Tribunal Constitucional declara eutanásia inconstitucional, mas não fecha a porta a nova lei
Os juízes consideraram “excessivamente indeterminado” o conceito de lesão definitiva de gravidade extrema que também tinha causado dúvidas ao Presidente da República. Mas foram mais longe e concluiram que o Parlamento pode legislar sobre o assunto. “O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”, disse o presidente do TC.
O Tribunal Constitucional (TC) dividiu-se, mas acabou por considerar inconstitucional a lei da eutanásia, aprovada em Janeiro no Parlamento, por considerar excessivamente indeterminado o conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema”. Sete juízes contra cinco votaram a favor do acórdão que, embora declare o diploma inconstitucional, não fecha a porta ao Parlamento para fazer uma nova lei da eutanásia.
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O Tribunal Constitucional (TC) dividiu-se, mas acabou por considerar inconstitucional a lei da eutanásia, aprovada em Janeiro no Parlamento, por considerar excessivamente indeterminado o conceito de “lesão definitiva de gravidade extrema”. Sete juízes contra cinco votaram a favor do acórdão que, embora declare o diploma inconstitucional, não fecha a porta ao Parlamento para fazer uma nova lei da eutanásia.
“O direito à vida não pode transfigurar-se num dever de viver em qualquer circunstância”, disse o presidente do TC na leitura pública da decisão. Apesar de o pedido de fiscalização preventiva da lei feito pelo Presidente da República não ter versado sobre a questão da inviolabilidade da vida humana, os juízes decidiram apreciá-la e concluíram que o art.º 24.º n.º 1 da Constituição “não constitui obstáculo inultrapassável”.
“A concepção de pessoa própria de uma sociedade democrática, laica e plural dos pontos de vista ético, moral e filosófico, que é aquela que a Constituição da República Portuguesa acolhe, legitima que a tensão entre o dever de protecção da vida e o respeito da autonomia pessoal em situações-limite de sofrimento possa ser resolvida por via de opções político-legislativas feitas pelos representantes do povo democraticamente eleitos como a da antecipação da morte medicamente assistida a pedido da própria pessoa”, lê-se no comunicado enviado à imprensa.
Por outras palavras, o TC considera que a questão da eutanásia “pode ser resolvida pela Assembleia da República”, mas impõe-se que o faça com leis “claras, precisas, antecipáveis e controláveis”, acrescentou João Caupers, presidente do tribunal. E isso não aconteceu com este diploma, na óptica dos juízes, devido ao conceito de lesão definitiva, sobre o qual o Presidente da República tinha pedido a fiscalização preventiva do diploma.
“O conceito de ‘lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico’, pela sua imprecisão, não permite, ainda que considerado o contexto normativo em que se insere, delimitar, com o indispensável rigor, as situações da vida em que pode ser aplicado”, defendem os juízes. A norma é, assim, “desconforme o princípio da determinabilidade da lei”.
O Presidente da República pedira a fiscalização preventiva de alguns artigos do decreto da Assembleia com base no facto de a regra para o doente poder pedir a antecipação da sua morte (sem que isso seja punível para quem o ajudar) recorrer a “conceitos excessivamente indeterminados”. Marcelo Rebelo de Sousa referia-se aos conceitos de “situação de sofrimento intolerável” e de “lesão definitiva de gravidade extrema de acordo com o consenso científico", que são as justificações — a par de ser uma “doença incurável e fatal” — para que o doente possa pedir a morte medicamente assistida.
Já no caso do outro conceito, o de sofrimento extremo, o Tribunal considera que ele é possível de determinar “pelas regras da profissão médica”, pelo que não sofreu a censura constitucional. No entanto, os juízes consideraram o artigo como um todo e consideraram que é “desconforme ao princípio da determinabilidade da lei”, motivo pelo qual a declararam inconstitucional”. Após esta decisão, Marcelo Rebelo de Sousa vetou a lei por inconstitucionalidade.
Votaram a favor do acórdão o presidente do TC, João Pedro Caupers, assim como Pedro Machete, Maria de Fátima Mata-Mouros, Lino Rodrigues Ribeiro, José Teles Pereira, Joana Fernandes Costa e Maria José Rangel de Mesquita. Contra a decisão estiveram Mariana Canotilho, José João Abrantes, Assunção Raimundo, Gonçalo de Almeida Ribeiro e Fernando Vaz Ventura. À excepção do presidente, todos os restantes juízes apresentaram declaração a explicar o seu voto.
Relatora inicial era contra a eutanásia
A questão da inviolabilidade da vida humana foi a questão que mais polémica gerou entre os 12 juízes do TC em funções (a vaga deixada por Costa Andrade ainda não foi preenchida). A relatora inicial era Maria José Rangel de Mesquita, mas a sua posição era radical: o diploma deveria ser declarado inconstitucional por violação daquele direito fundamental.
Mas esta posição era minoritária. Apenas quatro dos 12 juízes a defendiam, contra oito que defendem o contrário, como se percebe pelas declarações de voto, em particular a declaração conjunta apresentada por Maria José Rangel de Mesquita, Maria de Fátima Mata-Mouros, Lino Rodrigues Ribeiro e José António Teles Pereira. Assim, o relator foi substituído e coube a Pedro Machete elaborar o projecto de acórdão que acabou aprovado.
Os quatro juízes eram contra a possibilidade de antecipação da morte medicamente assistida não punível e deixam-no claro na declaração conjunta: “O entendimento que a este respeito sustentamos foi o proposto pela primitiva relatora do processo, a primeira subscritora deste voto, no memorando apresentado à consideração do colégio de juízes" e que não vingou.
Na sua opinião, o direito à vida é um “direito intangível”, um “arquétipo civilizacional, cujo significado profundo projecta dimensões valorativas mais amplas”, presentes no Direito Internacional, estando “além da vontade ou do acordo de vontades dos sujeitos”. E por isso, prosseguem, “desempenham uma função eminente no confronto de todos os outros princípios e regras e têm uma força jurídica própria, com os inerentes efeitos na subsistência de normas e actos contrários”.
Na decisão, o acórdão defende outro caminho. Reconhece-se que “o direito à vida é objecto de um reconhecimento jurídico universal”, mas “esta universalidade não impede a consagração de soluções muito diferenciadas quanto à matéria da morte medicamente assistida”, como se comprova com a existência de leis nesse sentido em diferentes países em que se aceita, ou não se proíbe, a eutanásia activa ou o suicídio assistido.
De acordo com a fundamentação, o direito ao desenvolvimento da personalidade confere “a cada pessoa o poder de tomar decisões cruciais sobre a forma como pretende viver a própria vida e, por inerência, a forma como não a pretende continuar a viver”. “O espaço irredutível de autonomia individual para conduzir a sua própria existência de acordo com as características específicas da sua personalidade e o seu projecto de vida decorrente da liberdade geral de acção pode, assim, integrar um projecto de fim de vida delineado em função das concepções e valorações relativas ao significado da própria existência para cada pessoa”, defendem os juízes.
Lembram ainda que “em Portugal o suicídio tentado não é punível e que mesmo as intervenções e tratamentos médico-cirúrgicos levados a cabo de acordo com as leges artis tendo em vista prevenir, diagnosticar, debelar ou minorar doença, sofrimento, lesão ou fadiga corporal só podem ser realizados com consentimento do paciente. Com Maria Lopes