Post Mortem: quais os rostos de quem cuida dos mortos?

Diana, Catarina, António, Luís e Paulo estão habituados a lidar diariamente com a morte. As suas profissões permitem-nos despedir com dignidade de quem parte e dão algum alento aos que ficam, mas ainda são encaradas com estranheza. Afinal, quais as experiências e perspectivas de quem cuida dos mortos?

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Diana Logrado, 28 anos, médica legista

“Quando digo o que faço, a pergunta que vem a seguir é sempre se eu não via CSI a mais”, graceja Diana Logrado, médica legista no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses (INMLCF), em Lisboa. Com 28 anos, está a concluir o último ano de especialidade e explica que, ao contrário do que a maioria das pessoas pensa, a medicina legal também pode dizer respeito aos vivos: enquanto a patologia forense se dedica a cadáveres, a clínica forense abrange todos os exames feitos na sequência de agressões físicas e sexuais, acidentes de viação e acidentes de trabalho. E, também, ao contrário do que muitos pensam, um corpo não é autopsiado apenas quando há suspeita de crime: a autópsia acontece sempre que é necessário perceber qual a causa de morte.

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Diana Logrado, médica legista no Instituto Nacional de Medicina Legal e Ciências Forenses

Quem tem a última palavra sobre se uma autópsia deve, ou não, ser feita é o Ministério Público, muitas vezes com base no relatório feito pelos médicos legistas depois do exame de hábito externo, feito a todos os cadáveres que entram no INMLCF: num primeiro momento fotografa-se o corpo e regista-se a roupa; depois disto, a roupa é retirada e são registadas características de identificação, como a cor dos olhos ou a cor de cabelo. É ainda observada toda a superfície corporal à procura de lesões traumáticas, como feridas, equimoses ou escoriações. Depois do parecer do Ministério Público, se a decisão for afirmativa, passa-se para a fase seguinte: o exame de hábito interno.

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Primeiro, Diana tem de se equipar, e aí precisa de estar totalmente protegida, para não estar em contacto com qualquer resíduo do cadáver. Fato verde com calças e camisola, bata impermeável, avental, mangas plastificadas, dois pares de luvas, botas, touca, máscara e óculos de protecção ou viseira. E agora, em pandemia, também usa um fato-macaco branco, “tipo astronauta”, quando lida com alguém com um teste positivo à covid-19. Depois disto, está pronta para começar. São feitas incisões na cabeça, no tórax e no abdómen e retiram-se os órgãos dessas cavidades para serem dissecados. Ao longo da autópsia, o procedimento é fotografado e registado para depois ser feito o relatório. Outros aspectos podem ser cruciais e devem ser tidos em conta, como as texturas e os cheiros, ou ainda os exames complementares de toxicologia. O estado em que o cadáver chega também pode condicionar o resultado da autópsia. Por exemplo, um corpo em avançado estado de decomposição ou que tenha sido deixado em ambientes extremos dificulta o exame: embora as etapas sejam as mesmas, muitas vezes o estado dos órgãos torna impossível a sua dissecação e análise.

Com todas estas imagens tão gráficas na nossa cabeça, é inevitável perguntar a Diana se alguma vez precisou de acompanhamento psicológico profissional: “Não, mas também não sinto que haja necessidade. Eu acho que é preciso ter muita vocação para vir para esta área”, considera. “Eu gosto mesmo muito disto, não me vejo a fazer outra coisa”. Muitos não partilham a mesma opinião, como alguns dos seus colegas que desistiram pouco tempo depois de ali terem começado a trabalhar. “Eu acho que alguns chegam cá sem noção. Porque as pessoas que tiraram um curso de medicina, à partida, têm o sonho de dedicar a sua carreira a salvar vidas e a criar uma relação médico-doente. Não se enganem, não é aquilo que fazemos aqui”. Tal não quer dizer que seja fácil: autopsiar uma criança ou uma mulher grávida, por exemplo, deixam um peso particularmente grande na sala.

Como se faz a gestão destes momentos? Para Diana, os colegas são fundamentais: “Somos muito amigos e há um grande espírito de equipa. Portanto, o ambiente acaba por ser muito positivo e dentro da seriedade que é o nosso trabalho conseguimos arranjar mecanismos que nos permitem sair um bocado desta realidade.” Apesar de tudo, Diana refere que fica frequentemente mais perturbada com alguns casos que acompanhou na vertente clínica, como acidentes e agressões.

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Catarina Vardasta, 36 anos, tanatopractora

No bloco de tanatopraxia, o ambiente é quase surreal. As luzes são demasiado brancas, o cheiro a desinfectante é esmagador e toda a gente veste uma bata azul de plástico e uns protectores de sapatos da mesma cor, para não haver contaminação. Mas da mesma maneira que há estranheza, também há uma inegável sensação de entusiasmo. Como se, de repente, tivéssemos saltado para o cenário de uma qualquer série de televisão americana, onde há um crime por resolver.

Catarina Vardasta trabalha há seis anos na sede da Servilusa. Mas não foi por aqui que começou. “Trabalhei no call center durante seis anos, na parte dos escritórios, nos andares de cima. Entretanto, surgiu a curiosidade de ir ver o que é que se fazia na parte de baixo do edifício – onde estão os blocos de tanatopraxia e interessei-me logo”, conta. “Não era, de todo, uma área que eu tivesse pensado para o meu futuro, mas desde o dia em que vi o que fazia um tanatopractor percebi que era algo que eu realmente gostava de fazer.” Nos cinco anos que se seguiram aguardou por uma vaga e, assim que surgiu a oportunidade, inscreveu-se no curso. No fim da formação, o sonho estava cumprido.

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Catarina Verdasta é técnica de tanatopraxia na Servilusa

O procedimento base da tanatopraxia (termo que surge das palavras thánatos, o deus grego da morte, e praxis, que significa “acção”, em latim) consiste em injectar um líquido conservante numa artéria e drenar o cadáver de fluidos. É esta intervenção que permite que o corpo se conserve com uma aparência “normal” por mais tempo, antes que a matéria se comece a decompor. Mas o trabalho dos tanatopractores envolve toda a preparação antes do funeral. Quando recebem um corpo, desinfectam-no, fazem o processo de injecção e drenagem e, quando necessário, também um “restauro”: reconstroem partes do corpo com uma cera própria, para lhe devolver o que for possível da aparência que tinham em vida. Por fim, vestem-no, penteiam-no e maquilham-no para a derradeira cerimónia. São estes profissionais os responsáveis pelos rostos serenos e imperturbáveis dos cadáveres na hora da despedida, quando todos à sua volta, os vivos, estão imersos numa profunda dor.

Para Catarina, esta é uma forma de ajudar os que ficam e de lhes dar uma despedida: “Quando estou a fazer o meu trabalho, estou sempre a pensar na família da pessoa de quem estou a tratar e de que forma é que lhes posso garantir um adeus digno e mais tranquilo.”

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A gestão emocional, diz, é essencial neste trabalho. E por isso é que a empresa faculta um psicólogo para ajudar os seus trabalhadores: “Eu nunca senti necessidade de acompanhamento psicológico, apesar de estar sempre disponível. O nosso dia-a-dia é isto e nós conseguimos andar para a frente.” O seu maior apoio são os colegas de bloco, que a compreendem melhor do que ninguém: “Aqui fazemos um bocadinho de psicólogos uns dos outros. Acho que nesta área é muito assim”. E a família, que está sempre lá quando precisa.

Ainda assim, há momentos mais difíceis de superar. Quando a avó faleceu, foi Catarina quem tratou dela, a pedido da própria. Tratar de crianças é sempre doloroso e, de início, não conseguia segurar as lágrimas, mas com a experiência veio a sabedoria de saber controlar as emoções nestes momentos.

A conversa acaba e Catarina equipa-se para começar mais um dia de trabalho. Luvas, bata, óculos e máscara fazem parte do equipamento essencial: é que ali lidam com resíduos biológicos tóxicos que representam um risco para a saúde. Liga o rádio, que põe fim ao silêncio e, de repente, a música preenche o espaço e faz-lhe companhia.

António Gomes, 58 anos, e Luís Isidro, 61 anos, coveiros

António e Luís estão sempre presentes no momento mais difícil da despedida: o enterro. São eles que cavam as sepulturas, faça chuva ou faça sol, que baixam o corpo a 1,30 metros, que pegam nas pás para cobrir o caixão de terra. São os responsáveis pelo fechar de um ciclo – a partir daquele momento, os entes queridos não voltarão a ver a pessoa que perderam. E para os dois coveiros, este é um momento repetido todos os dias.

É António Gomes quem começa por falar. Durante anos trabalhou na Suíça e quando regressou, sem emprego, aceitou uma das vagas que a Câmara Municipal tinha aberto para o Cemitério de São Sebastião, no Montijo. Afinal, tinha uma família para sustentar. E aqui ficou, já lá vão mais de 20 anos. Não esconde que se sente desvalorizado e esquecido: “É um trabalho em que ninguém se preocupa connosco e em saber se estamos bem ou mal. Ninguém dá valor.”

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António Gomes é coveiro

O trabalho de um coveiro vai além de abrir sepulturas e cobrir caixões. Também são eles que levantam da terra as ossadas, anos depois de um corpo ser enterrado. Nesses momentos, têm de abrir o caixão para perceber se o cadáver ainda está em decomposição (e nesse caso volta a ser enterrado) ou se já está em “esqueleto”. Nesse caso, os coveiros retiram os ossos, um a um, e lavam-nos. Depois de tratados com todo o cuidado, seguem para um crematório para serem reduzidos a cinzas ou são colocados em gavetas próprias no cemitério.

Também são eles que, mesmo sem qualquer obrigação, se despedem de quem está sozinho. “Nós, às vezes, fazemos de familiares dessas pessoas que não têm ninguém”, conta António. Compram flores à entrada do cemitério e dizem umas breves palavras. Fazem uma homenagem improvisada - e já perderam a conta às vezes em que isto aconteceu.

“Sabem, eu fui motorista do Diário de Notícias durante 17 anos”, começa por dizer, por seu turno, Luís Isidro, enquanto faz uma cova. Ficou desempregado, aos 40 anos, depois de algumas mudanças na estrutura do jornal. Estava farto de conduzir o dia inteiro na confusão da capital e quis mudar para um emprego que lhe permitisse estar num ambiente sereno. Encontrou no silêncio do cemitério a calma de que precisava. “Estava saturado e isto aqui é mesmo uma paz.”

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Luís Isidro é coveiro

Percebe-se à distância que António e Luís são próximos: mais do que colegas, tornaram-se uma espécie de irmãos. É que, apesar de diferentes na forma de estar e de agir, compreendem-se como ninguém. “O António já é família porque eu acabo por passar mais tempo com ele do que em casa”, diz Luís. Ambos concordam que a morte de uma criança é dos momentos mais difíceis. Nesses momentos, “trabalha-se e chora-se com o coração muito apertado”.

Luís explica que a profissão também pode representar um risco para a saúde. Há alguns anos, não tinham sequer material de protecção para utilizar nos enterros e nos levantamentos das ossadas. E na segunda situação o problema é particularmente grave: cadáveres em decomposição são considerados resíduos biológicos tóxicos e podem provocar sérios problemas de saúde a quem estiver em contacto com eles. António chegou a estar internado no Curry Cabral, em Lisboa: “Eu já apanhei uma bactéria e estive internado durante sete meses, já lá vão cinco ou seis anos.”

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Todos estes momentos têm um impacto inevitável na saúde mental destes homens. Não têm apoio psicológico de um profissional, mas António afirma, sem pensar duas vezes: “O meu chefe é o meu psicólogo! De resto, não temos mais acompanhamento” E Luís, em silêncio, concorda com um gesto da cabeça. Referem-se os dois a Paulo Brás, o responsável pelo cemitério e o pilar daqueles que ali trabalham, que se sentem esquecidos e, muitas vezes, desamparados.

Paulo Brás, 52 anos, responsável pelos cemitérios do Montijo

Desde Outubro de 2011 que Paulo Brás gere os dois cemitérios do Montijo. É ele quem agenda os funerais, comunica com as agências funerárias, faz as escalas de funcionários e coordena a manutenção do cemitério e do material necessário. É também sua responsabilidade receber o corpo e a família do falecido quando chegam para o velório ou funeral. O trabalho não foi escolha sua e quando a presidência da Câmara Municipal lhe propôs o cargo, a primeira reacção foi inquietude e incerteza: “No dia em que soube que vinha para aqui trabalhar, não consegui dormir.”

Como é que se lida diariamente com a morte? A resposta a esta questão não é simples e a fórmula não é universal. Quando aqui chegou, ao Cemitério de São Sebastião, não teve qualquer formação sobre como lidar com a finitude da vida, nem acompanhamento psicológico para a carga emocional que o trabalho acarreta. Tudo o que aprendeu e que hoje tenta passar aos seus colegas deve-o ao passar dos anos e à inevitável experiência que daí vem. “Em termos de formação, ao início, não tive nada. Com o passar do tempo é que fui aprendendo e só agora, mais recentemente, é que tenho tido algumas formações sobre como gerir os sentimentos e lidar com as pessoas”.

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Paulo Brás gere dois cemitérios do Montijo

Apesar do seu trabalho ser na última morada de muitos, Paulo lida é com os vivos, o que torna tudo mais difícil, diz: “As pessoas quando aqui vêm estão fragilizadas e revoltadas por terem perdido alguém que amam. E é preciso saber ouvi-los, compreendê-los e, acima de tudo, saber o que dizer naquele momento difícil. Uma palavra dita sem maldade pode ser mal interpretada por alguém que está mais sensível. Temos de ter muito cuidado.”

Apesar de tudo, actualmente gosta do trabalho e da família que se criou entre os trabalhadores do cemitério, mas reconhece que existe um estigma: trabalhar com os mortos ainda é desvalorizado e visto com estranheza. Todos os meses, Paulo reúne a equipa do cemitério para perceber o que correu mal e bem naquele mês e para saber se alguém precisa de alguma coisa. É ali que desabafam uns com os outros, com a certeza de que serão compreendidos. “Eu faço um bocadinho o trabalho de psicólogo! Sei bem que é um trabalho desvalorizado e ninguém quer saber se eles (os coveiros) estão bem e se há condições adequadas para trabalharem”, diz Paulo.

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Paulo é crente, mas não sente que a fé tenha tido qualquer influência no modo como encara aquilo que faz: são as pessoas, mortas ou vivas, que têm peso nas funções que desempenha. E embora reconheça que o fim faz parte da vida, tal não significa que todas as situações sejam iguais e fáceis de ultrapassar: tal como António e Luís, diz que a morte de uma criança afecta toda a equipa de uma forma diferente. “Quando saio daqui, às vezes pego no carro, vou até ao rio e fico lá um bocadinho a espairecer antes de ir para casa.” Apesar de todas as dificuldades, Paulo continuará pelo cemitério, a cuidar desta casa eterna.

“Post Mortem: quais os rostos de quem cuida dos mortos?” é uma reportagem da autoria de Joana de Oliveira e Madalena Guinote Ramos, alunas da licenciatura em Jornalismo na Escola Superior de Comunicação Social.