Há uma linha que separa o drag do boxe — e Diego ultrapassa-a todos os dias

No ringue, é conhecido como “Dos Pistolas”. Nos palcos, apresenta-se como “Lola Pistola”. Entre luvas de boxe e unhas de acrílico, há dois anos que Diego Garijo anda a esbater concepções de género – e afirma nunca ter sido “mais feliz e completo do que agora”.

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AMY RAMIREZ

Não é injusto dizer que os mundos do bare-boxing e do drag não se sobrepõem frequentemente. Encontrar alguém que troque luvas e murros na cara por um espectáculo de glitter, vivido em cima de uns saltos de sete centímetros, é um caso raro, mas a vida de Diego Garijo, de 41 anos, não parece fazer sentido de qualquer outra forma.

A primeira vez que o mexicano pisou um palco como drag queen fê-lo com confiança e a dar tudo de si. Os saltos eram altos e o cabelo curto e encaracolado. A bijutaria que o adornava contrastava com o seu corpo marcado por tatuagens, uma tela que encontrava a unidade através do caos. O vestido floral dava “ares tropicais”, como descreve, e completava-o a música que os seus lábios enunciavam em playback. A adrenalina enchia o seu corpo e assim vinha ao mundo Lola Pistola, a dançar de um lado para o outro ao som de La vida es un Carnaval, de Celia Cruz, enquanto transformava a rigidez do boxe em graciosidade.

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A ideia de ser uma drag queen surgiu em 2019 a partir de um desafio para fazer algo fora da sua zona de conforto, numa aula sobre inteligência emocional, que Diego frequentava para se reconectar com a sua veia artística. Recorda-se, com clareza, do momento em que decidiu fazê-lo, embora a maior parte das pessoas a quem o narre revele algum cepticismo. “Eu comecei a meditar em ‘cogumelos mágicos’. Tive uma experiência etérea, onde, do nada, a vida falou comigo e disse: ‘Tu esqueceste-te que querias ser um artista.’ Quando eu tive esse momento de realização, a minha vida ganhou sentido outra vez e comecei a ir atrás da minha carreira artística”, afirma, em entrevista ao P3.

Nunca vacilou na sua decisão de personificar “Lola Pistola”, até porque, ao crescer, nunca enfrentou uma “masculinidade tóxica” que pusesse, de alguma forma, em causa a sua própria sexualidade. “Eu estou muito confortável com a energia feminina. Fui criado por uma mãe solteira e nunca tive nenhum homem tóxico na minha vida a dizer-me que, se agisse de certa forma, isso tornar-me-ia homossexual.”

Ao mesmo tempo que isto tudo acontecia, uma nova forma de boxe era legalizada em alguns estados da América: o bare-boxing, em que os lutadores não precisam de luvas para enfrentarem o seu adversário, o que, frequentemente, deixa imagens de caras sangrentas dos dois lados da barricada.

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Phil Lambert

Diego não era estranho a este mundo. Já tinha praticado havia uns anos artes marciais mistas (MMA), das quais acabou por desistir por pressões familiares, mas a necessidade de ter uma “última dança” e fazer parte da história falou mais alto, algo que a sua mulher e filhos acabaram por compreender. Depois de oito anos sem qualquer tipo de treino, inscreveu-se num ginásio, de forma a preparar-se para reviver “Dos Pistolas”, o seu alter ego de MMA, que enfrentaria agora um adversário dez anos mais novo do que ele. “Eu, quando faço algo, faço-o a 100%. Eu dou tudo de mim, não faço as coisas por metade. Foi por isso que consegui derrotá-lo”, confessa.

À procura de um objectivo

É no pequeno atelier em San Diego, na Califórnia, que Diego Garijo partilha a sua história com o P3. O pouco que a câmara do seu telemóvel deixa ver revela uma série de quadros de figuras grotescas, onde linhas se esbatem num mundo surrealista carregado de subjectividade, mas com uma mensagem clara: a arte é o maior trunfo da sua vida.

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Diego não sabe explicar de onde vem o amor pela mesma, mas acredita ter sido algo predestinado, não fosse o seu nome uma homenagem ao famoso pintor mexicano Diego Rivera, com quem partilha também a cidade natal. Nasceu em Guanajuato, uma cidade no centro do México, mas, ainda de tenra idade, passou clandestinamente a fronteira dos EUA, para se fixar em San Diego.

Quando era pequeno, costumava andar sempre com uma pequena mochila cheia de lápis de cera e de grafite, bem como um caderno de folhas brancas, onde desenhava histórias de super-heróis com cores exuberantes. “Quando era uma criança, eu nunca tinha sido exposto às belas-artes. Só consumia banda desenhada e era isso que me via a fazer no futuro. Quando comecei a crescer, percebi que podia ter uma vida com base na arte e eu queria mesmo perseguir esse sonho”, confessa.

E quase conseguiu seguir o tão desejado “sonho americano”, não tivessem as circunstâncias da vida uma palavra a dizer na sua história. O bullying que sofreu em criança, tanto no México, como nos Estados Unidos da América, aliado a um choque cultural na passagem entre os dois países, culminou numa espiral de crime e drogas que o afastaram do caminho artístico.

Foi nas MMA que encontrou, novamente, um propósito. A história é curiosa e Diego conta-a com tanto fervor que parece que aconteceu há meia dúzia de dias. “Eu tinha pouco mais de 20 anos, quando fui ver um filme a casa do meu irmão. Era um documentário sobre este lutador de boxe que as pessoas chamavam ‘Mark Kerr – The Smashing Machine’. Não mostrava uma boa vida para os lutadores, mas mesmo assim eu pensei: ‘É isto que eu quero fazer na vida.’” Cumpriu a promessa com relativa rapidez. Viu o documentário numa sexta-feira e, na segunda-feira, já estava a inscrever-se num ginásio para começar a preparar-se fisicamente para calçar as luvas e entrar no ringue.

Desde que começou, até quando foi forçado a desistir, passaram 14 anos. O grande objectivo era chegar à UFC, as maiores competições de MMA do mundo, mas, durante uma sessão de treino, um adversário acertou-lhe no olho, ferindo-o com gravidade — quase ficou cego. “O meu médico disse: ‘Se não te retirares agora, podes perder o teu outro olho.’ Se eu fosse solteiro, teria continuado a lutar, não quereria saber, mas com filhos e uma mulher pensei que a minha obrigação era parar.”

Nos anos seguintes, a luta transferiu-se do ringue para o dia-a-dia; os adversários eram, agora, a depressão e os pensamentos suicidas que o trabalho provocava. “Eu era um agente de execução — por exemplo, se alguém se quisesse divorciar, eu era a pessoa que entregava o papel do tribunal a dizer que o processo tinha começado. Era entregar más notícias para viver. Fazia muito dinheiro, mas era horrível”, explica.

“Sempre pensei na minha vida como um filme”

Com o regresso ao ringue e as primeiras performances de Lola, o sorriso de Diego reacendeu-se nestes dois últimos anos. Os gritos que ecoavam o seu nome, em conjunto com a adrenalina e euforia, devolveram-lhe um novo objectivo. E confessa nunca ter sido “mais feliz e completo do que agora”. O drag e o bare-boxing deram-lhe um canal para expressar todas as suas formas e testar os seus limites, explorar os seus extremos, que lhe permitem ser “hipermasculino”, quando entra “num ringue, cheio de tatuagens”, e “hiperfeminino”, quando calça os seus “saltos altos para entrar no palco e dançar”.

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As duas paixões acabaram por se associar das formas mais inesperadas. Diego recorda as salas de aquecimento das suas primeiras lutas de MMA. Eram pequenas, porque ainda estava a começar. O seu adversário ficava a poucos metros de si e várias vezes perguntava-se: “Vou conseguir derrotá-lo?” Curiosamente, quando estava nos bastidores da sua primeira performance como drag, o sentimento há muito esquecido voltou a percorrer a sua mente: “Será que vou conseguir ser melhor do que estas pessoas que já fazem isto há tanto tempo?”

Para além disso, também há semelhanças entre as dores que as duas actividades provocam. “Tenta dormir depois de uma partida de bare-boxing, com a cara toda cortada. Uma vez, eu estava a dormir num Airbnb e olhei para a minha cama, parecia que alguém tinha sido massacrado ali”, revela. É uma experiência que Diego compara a estar mais de oito horas de saltos altos, seja a dançar, seja numa sessão de fotos, e com a dor de uma unha de acrílico a partir-se.

Os próximos passos já parecem estar definidos. Um amigo está a produzir um documentário sobre a sua vida, que Diego considera ser “única” e que pode vir a público ainda este ano, depois de toda a atenção mediática de que foi alvo ter catapultado a sua carreira e aberto as portas de vários estúdios. “Eu sempre pensei na minha vida como um filme e, por vezes, pergunto-me: ‘O que querem ver as pessoas?’ O momento em que eu tomo decisões — e eu já tomei decisões muito questionáveis. Mas quando alguém finalmente vir a minha história, vai ser excitante e inspirador”, conclui.

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Quanto a Dos Pistolas, o alter ego parece ter os dias contados. “Estou pronto para a minha última batalha e, depois, reformar-me dessa vida. Desta vez, vai mesmo acontecer”, admite. “Percebi uma coisa. Eu posso não poder lutar até ao fim dos meus dias, mas há algo que posso fazer até morrer: a minha arte.” E Lola está pronta para viver para sempre.

Texto editado por Amanda Ribeiro