Balada de despedida: a insustentabilidade das carreiras científicas em Portugal
Tenho 30 anos, doutorei-me há quase três e nunca tive um contrato permanente. Nunca tive mais do que quatro anos assegurados. Trabalhei sem remuneração durante um ano e meio, antes de conseguir a primeira bolsa e, neste momento, estou desempregada, sem apoio salarial.
Escrevo este texto com um enorme sentimento de desânimo, perda e revolta, como cientista exausta, a quem Portugal não deu nenhuma hipótese razoável a não ser emigrar. Conto a minha história porque reflecte muitas outras e porque traduz a forma deplorável com que Portugal trata os seus investigadores, especialmente os seus investigadores jovens.
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Escrevo este texto com um enorme sentimento de desânimo, perda e revolta, como cientista exausta, a quem Portugal não deu nenhuma hipótese razoável a não ser emigrar. Conto a minha história porque reflecte muitas outras e porque traduz a forma deplorável com que Portugal trata os seus investigadores, especialmente os seus investigadores jovens.
Ao longo de oito duros anos construí um percurso científico que posso afirmar que é internacionalmente reconhecido, mas que, ainda assim, não foi suficiente para assegurar um contrato de seis anos através do Concurso para o Estímulo ao Emprego Científico promovido pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT), tutelada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Esta avaliação, que apresento com mais detalhe de seguida, foi ostensivamente injusta e arbitrária, como, aliás, já é comum esperar por parte da FCT.
Semanas após este resultado, obtive financiamento, enquanto principal investigator (PI), para um projecto de I&D da FCT, que imediatamente levantou problemas em relação à minha posição para o aceitar. O contrato de trabalho que ainda tinha com a minha universidade, e que se mantinha por não ter conseguido obter uma posição através do Estímulo ao Emprego Científico, foi-me apresentado como incompatível com a posição de PI nesse projecto, ou mesmo com a pertença a qualquer outro projecto de investigação. Tinha duas opções: ou mantinha o meu emprego e deixava os meus projectos, para os quais trabalhei arduamente para conseguir financiamento; ou mantinha os meus projectos e deixava o meu emprego. Devo dizer que fui pressionada para escolher a primeira e que essa opção foi apresentada pela FCT como a “solução” para o meu problema. Foi-me indicado que deveria pedir a minha saída da equipa dos projectos e entregá-los a outros investigadores. Escolhi fazer o contrário: rescindir o meu contrato de trabalho e procurar outro emprego (leia-se, emigrar) para poder manter aspectos cruciais da minha carreira científica; para poder, essencialmente, ter condições para executar o meu trabalho.
Porque não, não vou negligenciar a minha carreira e desvalorizar o meu trabalho para manter o meu emprego num país em que é a FCT que controla, e ao que tudo indica, quase arbitrariamente, a maioria do financiamento para a ciência. Não num país que trata tão lamentavelmente a sua mão-de-obra científica. Não num país quase sem oportunidades para cientistas júnior. Não num país incapaz de sustentar carreiras científicas. Porque, sinceramente, atingi o meu limite. Tenho 30 anos, doutorei-me há quase três e nunca tive um contrato permanente. Nunca tive mais do que quatro anos assegurados. Aconteceu pelo menos uma vez ter apenas três meses de salário assegurados. Trabalhei sem remuneração durante um ano e meio, antes de conseguir a primeira bolsa e, neste momento, estou desempregada, sem apoio salarial, enquanto mantenho funções de coordenação de projectos de I&D e escrevo artigos que contarão para o posicionamento da minha universidade em rankings internacionais.
Durante a minha “carreira” científica (e escrevo carreira entre aspas porque em Portugal não existe carreira científica desde há bons largos anos), fui estagiária, bolseira de doutoramento, gestora de ciência e investigadora doutorada contratada, publiquei mais de 50 artigos científicos em revistas internacionais indexadas, obtive financiamento como PI ou co-PI de três projectos de I&D, assumi posições na direcção de associações científicas internacionais, dei aulas e supervisão, e estabeleci uma rede de colaboração internacional considerável. Este percurso não foi, no entanto, considerado suficiente pela FCT para que me fosse atribuído um contrato de seis anos através do Estímulo ao Emprego Científico.
Observei disparidades muito significativas entre aquilo que foi contabilizado a outros candidatos e o que me foi contabilizado. Observei que as minhas métricas científicas eram equivalentes às dos cinco investigadores melhor classificados, juntos. Observei que foram nitidamente ignorados aspectos importantes do meu percurso, que a outros candidatos foram muito valorizados. Aconteceu só a mim? Não. Aconteceu só neste concurso? Também não. Este tipo de avaliação sem sentido aparente ou justificado por parte da FCT acontece constantemente. Há anos.
Ilustro o meu exemplo porque é aquele que conheço melhor. Mas tenho tido conhecimento de inúmeros outros casos semelhantes. Colegas que não conseguiram o Estímulo ao Emprego Científico por terem currículos “brilhantes, mas demasiado bons para o nível a que correm”, quando não são os investigadores que escolhem o nível para o qual concorrem, são sim condicionados pela FCT a concorrer a determinado nível dependendo do número de anos pós-doutoramento. Colegas que observam a FCT a infringir os próprios regulamentos em concursos para bolsas de doutoramento (ao, por exemplo, excluir candidaturas por o candidato não ter apresentado certo documento, quando no regulamento é expressamente indicado que esse documento pode ser entregue apenas em caso de aceitação da bolsa).
Colegas que pedem recurso das decisões da FCT, as quais recebem respostas, às vezes após anos, como “tem razão, mas não alteramos a decisão”. Colegas que reclamam por escrito de erros da FCT e são integralmente ignorados, sem qualquer tipo de resposta, a não ser, por telefone, “isto é a vida a ensinar-lhe a lutar contra adversidades”. Colegas que colocariam estes casos em tribunal, provavelmente com taxas de sucesso significativas, mas que não têm rendimentos para prosseguir com tal. Colegas que, efectivamente, ficam largos meses desempregados à espera de decisões alheias, à espera de burocracias infindáveis, ou simplesmente a trabalhar gratuitamente na esperança de um dia obter uma posição. E isto tudo, não nos esqueçamos, é feito com dinheiro público. Dinheiro público vindo, pelo menos em parte, da contribuição dos portugueses, completamente ignorantes que, à custa da tremenda má gestão dos fundos nacionais para a ciência, um número inimaginável de investigadores portugueses vive precariamente e com uma saúde mental preocupante, acabando, muitos deles, a serem forçados a sair do país para ter condições mínimas para trabalhar.
Ao falar da FCT estamos a falar de uma instituição que sai absoluta e constantemente impune de violações de regulamentos e falta de transparência. Uma instituição que é alvo de descrença, e, muitas vezes, também de chacota pela comunidade científica portuguesa. Uma instituição que manipula dados para enganar os contribuintes (divulgando, por exemplo, taxas de aceitação de projetos na ordem dos 9,4%, quando na verdade foram de 5%). Uma instituição que, e não por acaso, é provavelmente das mais criticadas neste país.
Além de tudo isto, importa também ter em conta que, e conforme o último relatório da Fenprof, são os investigadores jovens quem suporta a maioria da ciência realizada neste país, em estados alarmantes de burnout e desânimo, numa academia cúmplice, endogâmica, sexista e vertical como em raros outros países ocidentais, traumatizante para muitos, e com poucas ou nenhumas oportunidades de trabalho não precárias.
Quando descrevi a minha situação a investigadores estrangeiros, de oito países, a reacção foi unânime: incredulidade pela falta de meios e condições (para não falar de consideração) que Portugal oferece aos seus investigadores jovens. Muitos não conseguiram, simplesmente, compreender o que pode levar um país a desperdiçar assim os seus cientistas. A minha situação particular acabou por correr bem, consegui uma posição num laboratório de referência na minha área de paixão, onde sei que serei bem acolhida e onde terei oportunidades de crescer enquanto cientista que Portugal nunca seria capaz de me oferecer. Era escusado, no entanto, o sentimento de ter sido atirada para fora do meu país.
Levo boas memórias dos meus colegas com quem tanto aprendi, vivi e partilhei. Levo preocupação e receio também. Por eles, pelos investigadores portugueses em formação, e por aqueles com famílias ou sem contexto favorável para emigrar. A ciência em Portugal não tem futuro se este cenário permanecer o mesmo – e já assim se mantém há décadas.