Só se perdoa o imperdoável
“Só se perdoa o imperdoável, pois o perdoável já está perdoado”, diz Derrida, e eu fico ainda mais revoltada por ter noção da corda que me ofereceste, este paradoxo com que me ataste as mãos.
Não ando de avião quase há dois anos, não saio desta cidade deste o Verão passado. Nem posso contabilizar essa saída, foram duas semanas merdosas numa casa no Algarve, escolhida online, onde não se percebia que ficava no centro da vila, mesmo colada a um restaurante barulhento que fechava tardíssimo, e com os quartos colados a uma estrada que tinha imenso trânsito assim que nascia o dia.
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Não ando de avião quase há dois anos, não saio desta cidade deste o Verão passado. Nem posso contabilizar essa saída, foram duas semanas merdosas numa casa no Algarve, escolhida online, onde não se percebia que ficava no centro da vila, mesmo colada a um restaurante barulhento que fechava tardíssimo, e com os quartos colados a uma estrada que tinha imenso trânsito assim que nascia o dia.
Foram duas semanas de stress entre as birras do meu filho, as paranóias da minha mãe e a tristeza e o cansaço evidentes do meu pai, que já não vai para novo. Duas semanas que me saíram caríssimas e em que dei cabo das poupanças que tinha conseguido amealhar durante a pandemia. Para nada. Duas semanas em que, cansada e tristíssima, como o meu pai, me embebedei todas as noites com vinho branco, assim que deitava o miúdo na cama, e muitas vezes já estava bastante tocada quando o ia deitar e ele devia achar que a mãe ficava bem-disposta à noite, em oposição ao ar ensimesmado com que passava todos os dias, na praia, na piscina, a comer sardinhas, onde quer que fosse.
Não te tirei da cabeça as férias todas, o Verão inteiro, julguei que estava a enlouquecer, a sério. Nem sequer conseguia ver um post teu, se por acaso me surgia no feed eu rapidamente tinha de fazer scroll para não o ver, para não ver o que fazias, para não sentir a minha inexistência na tua vida e a possível felicidade que me mataria saber que terias alcançado sem mim. Porque eu, durante os meses em que estivemos separados, não fui feliz nem só um segundo, nem quando estava a cair de bêbeda, e foram muitas as noites, nem quando fui para cama com outra pessoa só para mostrar a mim própria que iria ultrapassar a importância que tinhas na minha vida.
Quando fui para a cama com outra pessoa e me comportei exactamente como tu, imitei tudo aquilo que me fazias, talvez num derrame de insanidade para sentir o teu poder, para experimentar o que tu sentias, para ver o que tu vias. E saí de casa da outra pessoa vazia, angustiada, ainda mais triste e ridícula do que antes. A conduzir de madrugada pelas estradas desertas e a fotografar avenidas vazias para colocar nas minhas páginas das redes sociais e mostrar ao mundo e a ti a minha solidão, tão vasta como toda a internet. E agora estamos aqui, alguns meses depois, e eu não consigo esquecer-me do que me fizeste. “Só se perdoa o imperdoável, pois o perdoável já está perdoado”, diz Derrida, e eu fico ainda mais revoltada por ter noção da corda que me ofereceste, este paradoxo com que me ataste as mãos.