Os Maias, o racismo ou a visão estreita das coisas
Eça é racista? Acusá-lo de tal é cair numa superstição literária — dessas que hoje fazem encher o olho e dão parangonas. Camões, por este andar, ainda há-de ser proibido nos programas por se considerar que cada poema lírico seu é um piropo machista e ofende a dignidade da mulher.
Lido o artigo vindo a lume no PÚBLICO (de 7 de Março), dedicado à questão do racismo que, segundo a investigadora cabo-verdiana, Vanusa Vera-Cruz Lima, pode ler-se em diversas passagens de Os Maias, de Eça de Queirós, impõe-se-nos denunciar o erro em que incorrem as interpretações deste tipo, as quais têm como única origem os novos preconceitos que a ideologia oca deste nosso tempo produz. Preconceitos que, ao fim e ao cabo, mais não são do que moda, modismo, superficilidade mascarada de pretensa lição democrática. Efeitos do “politicamente correcto”, dir-se-á, mas que lesam profundamente a compreensão (ou a possibilidade de se compreender) a cultura de outros períodos.
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Lido o artigo vindo a lume no PÚBLICO (de 7 de Março), dedicado à questão do racismo que, segundo a investigadora cabo-verdiana, Vanusa Vera-Cruz Lima, pode ler-se em diversas passagens de Os Maias, de Eça de Queirós, impõe-se-nos denunciar o erro em que incorrem as interpretações deste tipo, as quais têm como única origem os novos preconceitos que a ideologia oca deste nosso tempo produz. Preconceitos que, ao fim e ao cabo, mais não são do que moda, modismo, superficilidade mascarada de pretensa lição democrática. Efeitos do “politicamente correcto”, dir-se-á, mas que lesam profundamente a compreensão (ou a possibilidade de se compreender) a cultura de outros períodos.
Com efeito, é dum total reducionismo interpretativo ler-se este ou qualquer outro romance de Eça (ou de qualquer outro autor, seja de que latitude literária for) à luz das novíssimas tendências literárias, contaminadas por aquilo que são as guerras do pós-estruturalismo e por aquilo que, segundo Aguiar e Silva, é a indeterminação própria das “derivas e errâncias de teorias literárias pós-modernas que confundiram o anunciado ‘fim das grandes narrativas monistas’ com a anarquia cognitiva” (cf Colheita de Inverno – ensaios de teoria e crítica literárias, Almedina, p. 22).
A literatura sofre, hoje, na sequência do que em 1987 sucedeu com Paul de Man (a figura de proa da escola de Yale teria colaborado num jornal anti-semita belga, entre 1940 e 1942), com o aproveitamento dos adversários da teoria em literatura. Observando o declínio advindo do desconstrucionismo, logo trouxeram para os estudos literários os “ismos” que, actualmente, secundarizam o que deveria estudar-se sem pré-juízos: precisamente o texto literário. Do pós-colonialismo aos estudos de género, do feminismo aos estudos culturais, até outras áreas em que a literatura interessa só para se fazer doutrina, já cá faltava quem viesse a acusar um escritor português de racismo, ou de outro “ismo” qualquer. Calhou a sorte ao autor de Os Maias e eis que Eça é acusado de ter escrito uma obra — a sua obra-prima, note-se — onde há trechos racistas.
Tal como é absurdo defender-se a destruição de monumentos arquitectónicos por estes terem sido construídos na época da expansão portuguesa, e é igualmente absurdo considerar Vieira um adepto da escravatura, também absurdo é defender-se que Os Maias, como refere a doutoranda Vanusa Vera-Cruz, devem ser acompanhados de esclarecimentos pedagógicos relativamente a essas passagens. Diz a investigadora em Estudos e Teoria Luso-Afro-Brasileiros que “as passagens raciais não retiram nem adicionam o valor [sic] que esta obra representa na literatura portuguesa”. Assim, declara, tais esclarecimentos pedagógicos, poderiam criar “oportunidades de ensino e instrução culturalmente responsáveis”. Mas, se essas passagens não retiram valor à obra, como a própria admite, pergunto: que valor acrescido teríamos, então, em debater o eventual racismo de uma passagem daquele romance que, apesar de racista, não retira nem adiciona valor à obra? Se, segundo se lê, “é importante separarmos o romance [...] das passagens racistas” que nele se encontram, qual a lógica do seu argumento? Para que serviriam, no limite, tais esclarecimentos, senão para afastar os leitores de Os Maias da tese central do romance ("Carlos falhou na vida não por causa, mas apesar da educação”, dixit Jacinto do Prado Coelho). Não seria absolutamente irresponsável dar-se a ler Eça, inquinando a sua recepção justamente por se vincar uma dimensão — a racista — lateral à tese da obra, ou mesmo sobreinterpretativa? Mais: que oportunidade de ensino culturalmente responsável existe quando, em vez da exegese estilístico-ideológica, caímos no comentário a questões que, na verdade, têm mais que ver com minudências biográficas do que com o romanesco? Importa, de facto, para ler Os Maias saber se seria Eça racista? Se seria machista ou homofóbico?
Se Vanusa Vera-Cruz leu as teses de Jacinto do Prado Coelho, os ensaios de Carlos Reis, o exemplar, e tão pouco citado, ensaio de José de Almeida Moura, Os Maias: ensaio alegórico sobre a decadência da nação (1984); se conhece os perigos das “superstições literárias” (Paul Valery) e se, verdadeiramente, lhe interessa dar a ler, de forma responsável, esta obra de Eça, então deveria reconhecer o óbvio, a saber: que o estilo queirosiano (leia a tese de licenciatura de Vergílio Ferreira sobre humor em Eça de Queirós, tese de 1943 — é a basezinha!) se estriba no domínio da ironia. Portanto, nas passagens racistas que refere (seja o modelo de beleza que Maria Eduarda representa: louro, pele ebúrnea, seja a passagem em que Ega diz que os negros querem agir como os brancos civilizados (Cap. XII)) a leitora Vanusa deveria ter em conta que o processo da ironia traduz uma visão do romancista que é, no mínimo, refractária ao racismo de que se pretende acusar o autor de Os Maias.
Como escreveu Vergílio Ferreira: “Carlos da Maia é um humorista, jogando muitas vezes com tipos subalternos como Dâmaso. Mas, perguntar-se-á, não é ridículo o idealismo de Carlos da Maia que nega, com o seu último acto, a teoria que ao mesmo tempo formula?” (p.21). Carlos e Ega são dândis e diletantes, só pelo prisma da ironia se compreendem: Carlos, um médico que, minado pelo “romantismo torpe”, transforma a vida em sucessão de paixões nefastas; Ega, um histriónico realista que explora a mãe e parasita Carlos e jamais realiza as suas Memórias dum Átomo. O estratagema de Eça em colocar as suas personagens à mercê do ridículo daquilo mesmo que expõem aplica-se especialmente ao Ega, personagem contraditória, que exprime uma visão do mundo ‘realista’, quando é, profundamente, um desequilibrado romântico. Lembre-se Ega vendo-se ao espelho, mascarado de Mesfistófeles, depois de expulso da casa dos Cohen. Esquecendo, por momentos, o seu artificial sentimento de indignação, mira-se, vaidosamente, exultando com a originalidade do seu disfarce. O trecho de Ega sobre os desconfortos da vida não é senão o narrador a mostrar-nos o absurdo da visão de mundo dessa personagem. Não, os desconfortos da vida não se devem à libertação dos negros. Isso é o que Ega tem de dizer porque é ele a caricatura do português que pensa assim e que Eça vitupera, sarcasticamente, como sarcasticamente destrói, pelo absurdo, Dâmaso, ou a mulher-demónio Maria Monforte.
Numa das passagens que Vanusa indica, a do capítulo IV, “sobre os negros de São Tomé se julgarem civilizados”, não se perca de vista que a crítica não tem que ver com os negros de São Tomé. A crítica recai nos portugueses que, na Europa, se julgam civilizados por imitarem os modelos inglês ou francês — é a inautenticidade, o provincianismo que Eça caustica. Não esqueça já agora outro dado fundamental: Os Maias são uma biópsia (leia Cleonice Berardinelli) ao país. Romance sobre um problema moral: o incesto que Carlos, responsável pela morte de Afonso, comete conscientemente. Acusaríamos Eça de considerar todos os portugueses capazes de cometer incesto? Carlos (nome que simbolicamente significa ‘sedutor’) nem sequer ama Maria Eduarda; obedeceu apenas ao instinto ("Educar o animal”, eis o que Afonso defendeu para o seu neto). Vítima dos factores de Taine (o meio, a raça, o momento), Carlos não pode escapar ao veredicto de Ega: ele é um demónio — não pode amar. Todo o romance deriva da análise de Eça sobre “o meio lisboeta, portuguesmente ocioso” e o “temperamento mole e apaixonado”, condicionantes dos comportamentos, valores e ideias que a galeria de personagens apresenta.
Vítimas da raça, da hereditariedade, quer Carlos, quer Ega, quer qualquer outra persona deste romance, são caricaturas, cara Vanusa. São prosopopeias — figuras da escrita. Oitocentista, filho dum século positivista, leitor de Balzac e de Zola, Eça é racista? Acusá-lo de tal é cair numa superstição literária — dessas que hoje fazem encher o olho e dão parangonas. Camões, por este andar, ainda há-de ser proibido nos programas por se considerar que cada poema lírico seu é um piropo machista e ofende a dignidade da mulher. Vai Victis!!