Cada vítima é uma vítima a mais
Nós, homens, somos os que agridem com a ilusão de que isso nos faz mais fortes, mais machos, mais seguros, mais donos do poder. Porque a violência doméstica é um exercício de poder.
Continuam a morrer dezenas de mulheres por ano em Portugal, vítimas de violência doméstica. Não são números. É gente. É realidade. Nos casos que vou citar, só os nomes são fictícios.
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Continuam a morrer dezenas de mulheres por ano em Portugal, vítimas de violência doméstica. Não são números. É gente. É realidade. Nos casos que vou citar, só os nomes são fictícios.
Alice sofreu agressões em dois relacionamentos. Estava grávida quando o companheiro a empurrou de um carro em andamento. Para se proteger, teve de deixar uma casa que era sua, não dele. Com filhos que foram assistindo a tudo.
Beatriz foi agredida várias vezes. Queixou-se à polícia, mas, como nada aconteceu, a sua situação agravou-se: a mesma pessoa que já a agredira pendurou-a pelos pés do alto de um prédio, à varanda. Mais tarde, violou-a. Das agressões continuadas resultou o nariz partido e um bebé que não chegou a nascer. Procurou uma casa de abrigo e levou as crianças que, mais uma vez, tinham assistido a tudo.
Parece ficção? Não é. E tudo isto aconteceu em Portugal. Não há milénios, nem há centenas, nem há dezenas de anos – são casos recentes de violência doméstica. De mulheres que tiveram ajuda e sobreviveram. Mas que não esquecem, porque não é possível esquecer. Porque o sono permanece sobressaltado. Porque as lágrimas insistem em correr.
Carla foi repetidamente agredida, insultada, perseguida, vigiada, controlada pelo homem que dizia amá-la. Adolescente, um filho interpôs-se, ajudou-a a chamar a polícia. Eles desceram do apartamento com o agressor e Carla ouviu-os a todos, pouco depois, a rir e a falar de futebol.
Durante anos, Deolinda foi agredida pelo marido. Ele combatera no Ultramar e, quando voltou, trazia stress pós-traumático. Como recusou tratar-se, a violência foi progredindo. Até ao dia em que ela o deixou e procurou ajuda, passando a viver longe dele, mas durante muito tempo a olhar por cima do ombro. Com medo. Assustada. Insegura.
Todas estas histórias e outras estão no livro Murro no Estômago que publiquei em Outubro. Tal como estão experiências de mulheres e de homens que, todos os dias, dão o melhor de si próprios para salvar vidas de agredidas. Também há agressões a homens? É verdade, mas as mulheres são a esmagadora maioria de quem é alvo da violência e também de quem acaba por morrer. E tudo isto está mesmo aqui ao nosso lado, não a milhares de quilómetros. Nós, homens, somos os que agridem com a ilusão de que isso nos faz mais fortes, mais machos, mais seguros, mais donos do poder. Porque a violência doméstica é um exercício de poder.
Mas será que, como sociedade, queremos mesmo saber disto? Será que, por muito que tenha sido feito, não há ainda passos fundamentais a dar? Será que, embora sucessivos governos e Parlamentos com diferentes composições de equilíbrios partidários, adoptassem decisões fulcrais para mudar a situação, não passa pelas mãos dos actuais políticos agir para que melhor se proteja quem é atingido? Claro que sim!
É preciso que as crianças envolvidas sejam todas consideradas vítimas directas da violência doméstica. É precisa uma educação para a afectividade que não desvalorize os perigos da violência no namoro e da violência contra os mais idosos. É preciso que uma mulher agredida e obrigada a deixar a própria casa que está a pagar, não tenha de, mesmo perdendo o emprego, continuar esmagada pela obrigação do pagamento aos bancos. E que, incapaz de suportar essa obrigação, o seu nome não vá parar à lista de devedores do Banco de Portugal. É preciso melhorar a oferta de formação e trabalho para quem vive situações destas e que os apoios cheguem, de facto, a quem deles mais necessita. É preciso que deixe de haver penas suspensas para agressores e passe a ser sistemática a existência de pena efectiva. É preciso que o programa de reabilitação dos agressores tenha eficácia e de facto os reabilite, não devolvendo à sociedade alguém sedento de vingança.
Enquanto não percebermos que o elogio do patriarcado, o domínio dos homens e a promoção de estereótipos da mulher submissa potenciam e agravam situações destas, estaremos sempre mais distantes da igualdade, do respeito mútuo, do amor verdadeiro, de acabar com a violência doméstica. E, para isso, ontem já era tarde. Porque a responsabilidade é nossa. Mesmo que as estatísticas digam que o número baixou de um ano para o outro. Não podemos contentar-nos com isso, continua a ser demasiado. Um exagero. Um resultado que nos obriga a fazer mais, a exigir mais, a ser melhores cidadãos para quem nos rodeia. Porque cada vítima é uma vítima a mais.