A mordaça e Cavaco Silva
Há casos que merecem análise, cuidado e cautelas, como os que o ex-Presidente citou. A democracia ganha sempre quando o escrutínio e a denúncia crítica de opções como esta acontecem. O problema neste caso está, como tantas vezes acontece com Cavaco Silva, numa questão de escala, ou de tempero.
A não recondução do presidente do Tribunal de Contas foi um erro incompreensível; a substituição da procuradora-geral da República, uma lástima; o processo de nomeação do representante português na Procuradoria Europeia sinal de que o Governo tem a tentação de intervir em excesso numa matéria sensível como a da Justiça; a acusação de manobras antipatrióticas de António Costa aos que criticaram esta ingerência na decisão de um júri europeu um absurdo infeliz. Mas se cada um destes casos pode levar a acreditar que o Governo tem uma perigosa tendência para o cerceamento ou controlo do poder judicial, usá-los como prova de que em curso está uma tentativa de “amordaçar a democracia”, como fez este sábado o ex-Presidente da República Cavaco Silva, é um exagero tão óbvio que chega a roçar o ridículo.
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A não recondução do presidente do Tribunal de Contas foi um erro incompreensível; a substituição da procuradora-geral da República, uma lástima; o processo de nomeação do representante português na Procuradoria Europeia sinal de que o Governo tem a tentação de intervir em excesso numa matéria sensível como a da Justiça; a acusação de manobras antipatrióticas de António Costa aos que criticaram esta ingerência na decisão de um júri europeu um absurdo infeliz. Mas se cada um destes casos pode levar a acreditar que o Governo tem uma perigosa tendência para o cerceamento ou controlo do poder judicial, usá-los como prova de que em curso está uma tentativa de “amordaçar a democracia”, como fez este sábado o ex-Presidente da República Cavaco Silva, é um exagero tão óbvio que chega a roçar o ridículo.
A mordaça é um poderoso símbolo de qualquer regime que ameace ou comprometa a substância de uma democracia. Fazia sentido falar num “Portugal amordaçado” em 1972, como o fez no exílio Mário Soares em referência à ditadura do Estado Novo. Não o faz agora. O poder judicial está a ser alvo de ingerências, em nomeações ou substituições, mas não temos razões para recear que a independência de juízes ou procuradores esteja a ser atacada. A comunicação social vive uma crise grave e há até decisões judiciais que atacam os seus princípios básicos de autonomia e liberdade de escrutínio, mas não se conhecem ingerências capazes de pôr em causa o seu papel. Não há razões para recear a existência de um plano de controlo do jornalismo independente, como no tempo de José Sócrates; nem há notícia de que Belém suspeita estar a ser espiada pelo Governo, como nos tempos do Presidente Cavaco.
Cavaco Silva peca, por isso, por exagero – o que configura uma oportunidade perdida. Há casos que merecem análise, cuidado e cautelas, como os que o ex-Presidente citou. A democracia ganha sempre quando o escrutínio e a denúncia crítica de opções como esta acontecem, ainda mais quando é feita por alguém que desempenhou as funções de chefe de Estado. O problema neste caso está, como tantas vezes acontece com Cavaco Silva, numa questão de escala ou de tempero. A sua aversão a António Costa e ao modelo de governo que teve de aceitar contra a sua vontade influenciam-lhe a análise; o estilo e o brilho de Marcelo que tanto ofuscam os seus mandatos toldam-lhe o discernimento. É esse ataque ad hominem que explica o fantasma da “democracia amordaçada”. E que, em vez de emprestar um carácter útil à denúncia, a transforma num resmungo birrento e inconsequente.