Uma série genial
A amizade é, no essencial, um ensaio de autoconhecimento na qual se joga a interacção mais básica, total e desconcertante com o mundo. Como a arte, uma amizade genial e graciosa, como a de Lenú e Lila, com diálogos e convívios silenciosos que se exercem a outro nível.
A Amiga Genial (Saverio Costanzo, 2018, HBO) não é só sobre uma amizade genial. É também uma série genial. Na verdade, é tudo genial, nesta obra de arte. E isso deve-se à sua integridade, sem concessões. Senão, vejamos.
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A Amiga Genial (Saverio Costanzo, 2018, HBO) não é só sobre uma amizade genial. É também uma série genial. Na verdade, é tudo genial, nesta obra de arte. E isso deve-se à sua integridade, sem concessões. Senão, vejamos.
Embora não tenha lido as obras da misteriosa Elena Ferrante, nas quais L’Amica Geniale, a série, se baseia, percebe-se bem que a sua excepcionalidade provém do texto literário, qual escrita pulsante, meditativa e hipnótica que, pela sua densidade e observância, mesmo em eco, nos impressiona. É verdade que muito se tem escrito e dito sobre o anonimato desta escritora. É verdade que o mistério é um dos coeficientes clássicos do marketing. Mas a honestidade das entrevistas dadas por escrito pela autora desta obra não deixa muitas dúvidas: Ferrante é discreta porque se rebelou face ao pior do cânone literário: a bajulação da figura mítica e inspirada do autor em detrimento da obra de arte. Obviamente que uma e outra estão ligadas. Mas é essa ligação tão preponderante que justifique que, no actual paradigma de mercado, a segunda se sobreponha continuamente à primeira? Parece-me uma lição importante: à arte o que é da arte.
É esse, também, um dos pressupostos na base do sucesso da série: a adaptação fílmica genialmente laborada que, respirando do texto literário, se faz acompanhar de um conjunto de contributos magistrais, entre os quais não se pode deixar de destacar: a hipnotizante banda-sonora de Max Richter, a exímia produção executiva de Paolo Sorrentino (percebe-se bem a sua assinatura; apetece dizer que há o antes e depois de A Grande Beleza na indústria cinematográfica), a fotografia sensorial de Fabio Cianchetti, o mesmo de Os Sonhadores (2003), de Bertolucci, e, claro, a realização assombrosa de Saverio Costanzo, o mesmo do inesquecível A Solidão dos Números Primos (2010), baseado no homónimo de Giordano. Há ainda as actrizes: Gaia Girace, que interpreta a melíflua Elena Grecu (Lenú), e Margherita Mazzucco, a fascinante enfant terrible Lila Cerrullo, heterónimas perfeitas.
A actriz que não é a pessoa que lhe dá corpo mas que podia perfeitamente ser; as muitas vidas e facetas do sujeito que (se) encena a si próprio sem cessar. A interpretação destas duas actrizes é, assim, marcante. Não por uma interpretação irrepreensível, sob um ponto de vista técnico. Não é disso que trata a arte, e muito menos a italiana. Mas sim porque compõem, ambas, numa elegante e magnética contradança de corpos, a performance perturbadoramente perfeita do que pode a construção literária. Ou seja, quanto mais verosímil, mais ficcional. E quanto mais ficcional, mais verosímil. Uma nota ainda para o tempo/espaço que aqui é evocado: Nápoles no imediato pós-guerra, onde uma certa brutalidade e despojamento não deixam de não exercer certo fascínio nos dias de hoje: pelo tempo e vivência, lentos e íntimos, das pessoas, lugares, comunidade. Pelo despojamento ao essencial. Ou a percepção clara da sua falta e, logo, a sua busca determinada. E, claro, pela estória (história?) vista à lupa de uma amizade que é, em tudo, muito pouco ortodoxa, logo, autêntica. Alguma, digna desse nome, o não é?
A verdade é que são muitos os amigos, ao longo da vida, que nos sugerem as coordenadas. E estes podem bem ser, como na série, além de pessoas, livros, paisagens, lugares, o deserto – o que nos é mais inteiro e doloroso. Porque se são essas as relações mais desinteressadas, são também as mais polidas, francas e virtuosas. A amizade é, no essencial, um ensaio de autoconhecimento na qual se joga a interacção mais básica, total e desconcertante com o mundo. Como a arte, uma amizade genial e graciosa, qual a de Lenú e Lila, com diálogos e convívios silenciosos que se exercem a outro nível. E quando a honestidade dos contactos humanos escasseia, também a vida em si mesma: dramática, feia e bela.