Saúde para lá da pandemia: “Sabemos tudo, mas ainda não aprendemos”
Numa conferência por ocasião dos 31 anos do PÚBLICO, Carmen Garcia, Gustavo Carona e Pedro Carvalho assinalaram o danos colaterais provocados pela pandemia de covid-19, em especial na saúde mental.
Podia ser o início de uma anedota: Um médico, uma enfermeira e um nutricionista entram numa sala. Mas não é uma anedota e o assunto é bem sério. Gustavo Carona, Carmen Garcia e Pedro Carvalho — cronistas do PÚBLICO — reuniram-se para debater a Saúde para lá da pandemia. No encontro digital, por ocasião do 31.º aniversário do PÚBLICO, falou-se de quando a pandemia chegou a Portugal, do pico de infecções, da possibilidade de uma quarta vaga, mas também dos danos colaterais da covid-19, quer seja nas outras doenças, na alimentação ou na saúde mental.
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Podia ser o início de uma anedota: Um médico, uma enfermeira e um nutricionista entram numa sala. Mas não é uma anedota e o assunto é bem sério. Gustavo Carona, Carmen Garcia e Pedro Carvalho — cronistas do PÚBLICO — reuniram-se para debater a Saúde para lá da pandemia. No encontro digital, por ocasião do 31.º aniversário do PÚBLICO, falou-se de quando a pandemia chegou a Portugal, do pico de infecções, da possibilidade de uma quarta vaga, mas também dos danos colaterais da covid-19, quer seja nas outras doenças, na alimentação ou na saúde mental.
Podem parar de romantizar a pandemia? é o título de uma crónica de Carmen Garcia publicada a 21 de Março de 2020. Na altura, há quase um ano, “toda a gente desvalorizava a pandemia”, começa por sublinhar a enfermeira. Nesse texto, a autora do blogue A Mãe Imperfeita falava do “caos instalado aqui ao lado”, e como “ia chegar aqui e ninguém fazia nada”. O caos que descrevia, reconhece a enfermeira, é “a realidade” de 2021.
Carmen Garcia acredita que um ano depois, o movimento negacionista — aqueles que não acreditam na gravidade da pandemia — continua a ter expressão. O médico intensivista Gustavo Carona diz que é “muito fácil compreender todos os argumentos do negacionismo”, dado que é inerente à “natureza humana fugir daquilo que nos incomoda”. Constata, ainda, que “é uma chatice viver sem diversão, restaurantes e bares”, mas recorda que os “danos em termos de saúde não-covid são catastróficos”, ao ponto de que “vamos demorar anos a perceber”. O especialista em medicina intensivista destaca acima de tudo que “a demagogia e a mentira são neste momento armas extremamente perigosa” e assinala que é preciso combatê-las com “boa informação”, de forma a evitar uma 4.ª vaga.
Ainda assim, os três especialistas acreditam que Portugal atravessará uma quarta vaga, mas esperam que “seja mais controlada”. “Neste momento temos o pé na mola, quando tirarmos acredito que venha uma nova vaga”, compara Carmen Garcia. E se enfermeira não sentiu muito a 1.ª e 2.ª vaga de covid-19 no Alentejo, onde trabalha, Gustavo Carona recorda que o norte do país sofreu o triplo de a sul do Mondego: “Fui atropelado pela pandemia em Março e Abril e triplicamos o número de camas nos cuidados intensivos.”
O médico intensivista assinala que “ninguém pode prever a 4.ª vaga” e que “sabemos tudo, mas ainda não aprendemos”. Gustavo Carona apela a que é preciso entender que “uma praia cheia de gente é menos perigosa do que um jantar com dez pessoas”. “O segredo ainda está, infelizmente, nas medidas mais básicas”, volta a lembrar.
O Sistema Nacional de Saúde colapsou?
A resposta à questão está entre o sim e o não. Para Gustavo Carona, “um super apaixonado pelo SNS”, é de louvar a “humanidade com que se desdobrou” e diz gostar “as pessoas estivessem dentro do hospital para compreender”. Mas o médico intensivista não nega um colapso: “O colapso do SNS é o quê? Quando deixamos de dar resposta? E isso aconteceu.”
Os três cronistas reforçam a ideia de que a “a resposta à pandemia, será sempre em prejuízo de outras áreas”. “Não há resposta perfeita”, relembra o médico intensivista, mas sublinha que o SNS “é a coisa mais bonita que temos na nossa democracia”.
Que outras áreas prejudicou então a pandemia de covid-19? O nutricionista Pedro Carvalho elucida que os hábitos alimentares dos portugueses tinham vindo a melhorar nos últimos anos, mas agora “os números que estavam numa trajectória descendente, podem voltar a subir”. Preocupa-se especialmente com a insegurança alimentar e recorda que “todas as situações que obriguem ao aumento de stress, levam a ter comportamentos alimentares piores”.
A ideia não é que nos tornemos obcecados com uma alimentação saudável durante o confinamento, explica Pedro Carvalho, mas sim, encontrar “um equilíbrio entre a saúde mental e saúde metabólica”. “Neste último ano, os únicos prazeres da vida que tivemos se calhar foram na alimentação”, assinala o nutricionista, que pede que se tente manter um regime semelhante a antes da pandemia. Ainda assim, se falhar, “é perfeitamente normal”.
Além da alimentação, foram muitas outras as áreas da saúde afectadas pela pandemia de covid-19. Gustavo Carona lamenta sobretudo os danos provocados nos centros de saúde, onde os médicos de família se viram impossibilitados de gerir os seus doentes, mas também as consultas de rastreio e exames de diagnósticos adiados. Ainda assim, “nunca deixamos de olhar para as outras doenças em momento”, lembra o médico intensivista.
E a saúde mental?
Já Carmen Garcia assinala sobretudo os danos provados em termos de saúde mental. Evoca alguns dados estatísticos importantes, como o facto de apenas 25% dos doentes com perturbação mental receberem tratamento e só 10% receber o tratamento adequado. “O que já era um parente pobre do SNS, só vai piorar”, alerta a enfermeira, que pede que se corra “a sério” atrás do prejuízo.
A autora de A Mãe Imperfeita apela também ao apoio psicológico nos lares de idosos, fustigados pela pandemia de covid-19. Os utentes dessas instituições “vêem morrer os colegas do lado” e “não são um número”, recorda. “Há pessoas deitadas na sua cama a olhar para a cama vazia ao lado, a pensar quando é a sua vez”, descreve Carmen Garcia.
Nos hospitais, o efeito da pandemia na saúde mental dos profissionais de saúde tem deixado marcas profundas, relata Gustavo Carona, que compara a situação à abertura de “uma caixa de Pandora”. Se “lidar com a vida e a morte não é novidade para quem trabalha no hospital”, “a exigência da entrega daquilo que é o amor à camisola”, arrasta os profissionais de saúde “como uma âncora para o fundo do mar”, compara o médico intensivista.
O que fica de positivo para “o mundo de amanhã”?
O fim-de-semana de aniversário do PÚBLICO é dedicado “Ao Mundo de Amanhã”. Que lições teremos aprendido com a pandemia para o futuro? O nutricionista Pedro Carvalho assinala alguns aspectos positivos como a optimização de métodos de trabalho ou o hábito de comer em casa. Acredita que as pessoas tenham “redefinido as prioridades”, e “pequenos problemas que nos queixamos anteriormente, parecem não fazer sentido”.
Carmen Garcia diz que “gostava de conseguir fazer um bonito encerramento”, mas não tem uma perspectiva tão positiva. “No início, tinha a esperança de que com a pandemia, se aprendesse a respeitar mais os profissionais de saúde”, observa a enfermeira, que diz bastar ler os comentários nos jornais para “ver que está tudo na mesma”.
O médico intensivista Gustavo Carona concorda: “As pessoas ficaram mais egoístas e com menor capacidade de ver o próximo.” Constata: “É aí que perdemos a nossa humanidade.” De positivo, assinala a valorização da ciência, do SNS e a descoberta da vacina em tempo recorde. Acredita que ficará para sempre provada que “em democracia, temos de sustentar os pilares da sociedade, do ensino, da segurança, e da justiça, em respostas iguais para todos os cidadãos”. “Gostava de que um vírus com a capacidade de nos tocar a todos, mostre a humanidade que temos em comum, muito maior do que aquilo que nos separa”, conclui.