A gritar é que a gente se desentende
Discórdia é um livro que também pode ser entendido por crianças, mas que se destina a todos. Fala, sem palavras, da urgência de se criar pontes de entendimento. Com esperança.
Integrado na colecção Imagens Que Contam, esta narrativa visual, explica-nos a autora, brasileira, começou assim: “Achei intrigante brincar com a ideia de fazer um ‘livro silencioso’ bem barulhento. Nessa pesquisa, me dei conta de que uma das maiores ‘gritarias’ que me rondavam há um certo tempo era justamente quando a política entrava no meio. Por ser brasileira e ter morado recentemente nos EUA e Inglaterra, presenciei de perto as transições para o ‘Brexit’, Trump e Bolsonaro. Era impossível fugir de discussões e opiniões questionáveis, desde motoristas de Uber a posts intermináveis no Facebook e WhatsApp.”
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Integrado na colecção Imagens Que Contam, esta narrativa visual, explica-nos a autora, brasileira, começou assim: “Achei intrigante brincar com a ideia de fazer um ‘livro silencioso’ bem barulhento. Nessa pesquisa, me dei conta de que uma das maiores ‘gritarias’ que me rondavam há um certo tempo era justamente quando a política entrava no meio. Por ser brasileira e ter morado recentemente nos EUA e Inglaterra, presenciei de perto as transições para o ‘Brexit’, Trump e Bolsonaro. Era impossível fugir de discussões e opiniões questionáveis, desde motoristas de Uber a posts intermináveis no Facebook e WhatsApp.”
Fica assim explicado o título: Discórdia.
O que começam por ser pequenas nuvens de desacordo passam a tempestades de conflito, algumas irreversíveis. Nani Brunini, natural de São Paulo, conta ao PÚBLICO: “Vi muitos amigos afastando-se de seus familiares e amigos porque, conversar, sobre qualquer assunto, tinha-se tornado intolerável. Essa angústia ficou ainda maior quando percebi que pessoas que respeito estavam do ‘outro lado’. Era uma situação incompreensível, inesperada, bizarra e parecia que não iria acabar bem.”
A ilustradora, que agora reside em Portugal, diz ainda: “Tenho a impressão de que desaprendemos a discutir – o que, aliás, é um terrível exemplo para as crianças. Aprendemos muito quando estamos perto de opiniões e experiências diferentes das nossas.”
Mas o livro acaba por trazer esperança, já que haverá alguém que conseguirá ajudar as personagens a encontrar “pontes de entendimento” e a relembrar “que é possível discordar de forma respeitosa e construtiva”.
Desafiámo-la a fazer uma legenda única no livro: o que escreveria e onde? “Acho que não colocaria legenda em qualquer lugar... Apesar de ter sido um desafio ter falado sobre um tema tão complexo sem ajuda de um texto, fez-me ver o assunto de uma forma diferente.”
Recorre à expressão, de que gosta muito: “Não entendeu? Quer que eu desenhe?” (o equivalente ao nosso “é preciso fazer um desenho?”) e esclarece: “Parece bobo, e muitas vezes diminuímos o papel das ilustrações, mas o facto de não termos um texto como suporte exige do leitor um esforço, na minha percepção, positivo, para que ele chegue a uma narrativa própria.”
Escutar o outro
No livro, há uma espécie de salvador, um rapaz. Quisemos saber quem era: “A priori, não houve uma razão muito clara para escolher aquele personagem. Realmente poderia ter sido qualquer um deles. O engraçado é que só me dei conta depois de terminado o livro de que ele é o personagem que tem as orelhas grandes, ou seja, uma óptima metáfora/solução para um grupo de pessoas que precisam de parar de gritar e ouvir-se uns aos outros.”
O rapaz conta a ajuda de um cavalo para orientar os humanos a encontrar uma saída, mas podia até nem ser um animal, como explica a autora: “Ao serem engolidos pelo monstro, os personagens continuam o caos – alguns discutem, outros se desesperam. Um deles, no entanto, sai da bagunça e percebe que consegue moldar a sua fala em qualquer formato. Ele, então, cria um cavalo (poderia ter sido um skate, uma bicicleta, um dragão...) como uma maneira de procurar uma saída daquele lugar escuro e cavernoso.” Resultou.
Dos pincéis ao digital
Sobre a técnica usada, descreve: “A maioria dos desenhos começou à mão com pincel e tinta-da-china e depois passou por um vaivém entre Photoshop, Procreate e às vezes de volta para os pincéis.” Também nos dá conta do ambiente: “Escutei muita música clássica e voltei a desenhos da minha infância, como a Pantera Cor-de-Rosa e o Fantasia da Disney, para me ajudar a traduzir o que seriam manchas de fala mais ríspidas e outras mais calmas. Foi bastante desafiante, mas muito divertido.”
Na escolha das cores, Nani Brunini quis fugir às convenções cromáticas da política: “O azul e o laranja servem apenas para diferenciar um grupo do outro. No geral, procurei fugir de referências a grupos específicos, como vermelho para a esquerda e azul para a direita, por exemplo.”
Apesar de Discórdia ter nascido por observação e vivência de conflitos ligados à vida política, “não é necessariamente um livro sobre brigas entre grupos políticos”, esclarece. E acrescenta: “Como as falas são manchas abstractas e não ícones, não sabemos sobre o que exactamente estão contra ou a favor, nem de onde são ou mesmo que língua falam. Só sabemos que são dois grupos antagónicos e que estão muito zangados.” Vê-se. Aliás, quase se consegue escutar a gritaria que as imagens transpiram.
Querer ganhar pelo grito
Não tem dúvidas de que, “nos dias de hoje, há muita gente querendo ganhar no grito, tentando desesperadamente convencer o outro de que o seu lado está certo, geralmente com boas intenções. No entanto, esse caos barulhento só ajuda a aumentar o gap”.
A esperança que se vislumbra no livro não surgiu logo à partida, apareceu durante o processo criativo, como recorda a autora, que se estreia com este livro depois de um curso realizado na escola ArCo, leccionado por Catarina Sobral e Tiago Guerreiro, com a orientação de André Letria, editor do Pato Lógico. “Fazer o Discórdia, para mim, foi uma experiência extremamente catártica. Como eu estava vivendo aquela situação em tempo real, não tinha ideia de como o livro iria acabar. A história foi mudando junto comigo. Eu, na verdade, comecei bastante negativa. Não conseguia ver uma solução para um impasse tão grande.”
Com o avançar do tempo, Nani foi perdendo o pessimismo: “Aos poucos, lendo mais sobre empatia e conversando com mais pessoas, comecei a ver uma luz no fim do túnel – o que não quer dizer que o fim do livro foi algo estilo Hollywood, em que todos chegam a um ponto comum ou mesmo ao contrário, dizendo: ‘OK, não tem jeito mesmo, cada um para o seu lado. Agora só conversamos sobre se vai chover ou não’.” E concluiu: “A situação é muito complexa e não há uma única solução – às vezes até ouvir o outro lado não é suficiente – mas penso que é nossa responsabilidade procurar de forma proactiva reverter esse cenário.”
Discórdia é, portanto, um livro “para quem está cansado de gritaria”. Afinal, ganha quem grita mais alto ou perdem todos? Chiu!