Outras epidemias e o futuro
Seria um desperdício inaceitável não aprender com a experiência que vivemos este ano. À maneira de Sérgio Godinho, seria bom que pudéssemos dizer que o 31.º ano do PÚBLICO “foi o primeiro ano do resto das nossas vidas”.
O PÚBLICO faz hoje 31 anos. Estou a tomar emprestado o lugar do director num ano do arco-da-velha. Não só por escapar ao sistema decimal – sempre os cinco dedos de cada mão… –, mas porque há um ano a pandemia espalhou-se por toda a parte e também nos acertou em grande.
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O PÚBLICO faz hoje 31 anos. Estou a tomar emprestado o lugar do director num ano do arco-da-velha. Não só por escapar ao sistema decimal – sempre os cinco dedos de cada mão… –, mas porque há um ano a pandemia espalhou-se por toda a parte e também nos acertou em grande.
Perguntar-se-á por que raio os responsáveis decidiram convidar um tipo como eu para esta função? Não sei. Sou um médico especialista em diagnóstico de cancro e sei pouquíssimo de virologia e epidemiologia. Talvez tenha sido porque tenho a mania de valorizar a procura da compreensão a partir da biologia. E, é claro, sou “do PÚBLICO” desde o primeiro dia.
Presumo que também terá contribuído para a escolha o facto de me ter posto a jeito. No primeiro trimestre de 2020, discuti “Natureza e humanidade: genética, ‘epigenéticas’ e longevidade”, a propósito da iniciativa Ser e Estar Vivo, o problema da “Epidemia dos cancros da tireoide” no domínio da explosão do diagnóstico de tumores minúsculos em vários órgãos, e o “Futuro da saúde e a evolução da medicina” no Dia do Patrono, Ribeiro Sanches, um precursor da Saúde Pública, nascido a 7 de Março de 1699 em Penamacor. Nessa altura, segunda semana de Março de 2020, já estávamos em pleno crescimento da pandemia e não antecipávamos o que aconteceria.
A ideia é discutir nesta edição especial do PÚBLICO o presente e o futuro do mundo em transformação, com foco no que chamámos “as outras epidemias”. Não só as que chegaram de novo, como aquelas que pioraram imenso com a covid.
É clássico dividir as doenças em transmissíveis e não transmissíveis, subentendendo que as doenças transmissíveis são contagiosas, como as pestes de ontem e de hoje. Já sabíamos que esta divisão é sobressimplificada, mas a realidade ultrapassou a imaginação com a entrada da natureza pela humanidade adentro. É a invasão das pessoas por agentes que vêm dos outros, sejam vírus, bactérias, ansiedade/medo ou outras “coisas”. Essas também se contagiam e de que maneira. O contágio traduz-se em manifestações epidémicas de toda a sorte, desde a obesidade e a diabetes até às neoplasias e às alterações mentais. Não há nada que se pegue tanto como o medo e não há nada que seja tão contagioso como a cultura e os hábitos. Basta pensar na exploração da moda e no vício dos ecrãs e das raspadinhas, condicionado pela cultura e a civilização. No mesmo sentido se está a notar a acentuação das desigualdades com o crescimento assustador da pobreza e com a escassez e precariedade do trabalho. Num mundo com cada vez menos contacto (“sem-tacto”, como diria D. Tolentino Mendonça), apesar das multidões ligadas em permanência.
Sei que os leitores não são suficientemente masoquistas para me aturarem a desenvolver estes aspectos – nem espaço teria – e limito-me a estimular que leiam as diferentes secções acerca das “outras epidemias”. Como não fui o autor dos textos estou à vontade para adiantar que irão gostar muito e, sobretudo, irão aprender imenso. Eu continuarei a procurar compreender, embora nem sempre seja fácil.
Encontrarão também a face positiva, esperançosa, do que poderá (e deverá) vir a ser o futuro, assim o saibamos construir.
Desde logo porque vamos controlar a pandemia com a imunidade, as vacinas e o desenvolvimento dos tratamentos. Palavra de honra. Os verbos-chave são controlar e cuidar (e também curar, mas só às vezes). É um bom ponto de partida. E também é bom perceber que nem a pandemia nem as destrutivas alterações climáticas são desastres naturais. É verdade que a natureza está metida nisto, mas a natureza não tem culpa – os desastres são fruto dos nossos comportamentos e das nossas acções.
Voltando à evolução da espécie humana e ao Ser e Estar Vivo, vale a pena acentuar que o Homem foi seleccionado, ao longo de milhões de anos, através de um processo que está muito além da genética pura e dura. É necessário enquadrar a obra actual do homem moderno, um ser vivo imbatível enquanto predador e consumidor. Daí que seja ainda mais necessário pensar como modificar as pessoas e as sociedades.
Progrediremos, se apostarmos na educação de todos, antes de mais das crianças e jovens. A educação visa mudar comportamentos e faz-se sobretudo do exemplo, tantas vezes contagioso. Na organização das comunidades humanas, muito mais analógicas do que digitais, tudo é político. Seria um desperdício inaceitável não aprender com a experiência que vivemos este ano. À maneira de Sérgio Godinho, seria bom que pudéssemos dizer que o 31.º ano do PÚBLICO “foi o primeiro ano do resto das nossas vidas”.