UE promete retaliar juridicamente após jogada unilateral de Johnson na Irlanda do Norte

Governo britânico estendeu período de tolerância para os controlos fronteiriços à revelia da UE. Comissão prepara “para breve” a abertura de um processo de infracção por violação do acordo do “Brexit”.

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Promessa de retaliação foi feita por Maros Sefcovic, vice-presidente da Comissão e representante da UE no comité conjunto que supervisiona a implementação do acordo do “Brexit” Reuters/POOL

O braço-de-ferro entre o Governo de Boris Johnson e a União Europeia por causa da implementação do protocolo irlandês, anexo ao acordo do “Brexit”, nas trocas comerciais envolvendo a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha, promete agravar-se nos próximos dias.

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O braço-de-ferro entre o Governo de Boris Johnson e a União Europeia por causa da implementação do protocolo irlandês, anexo ao acordo do “Brexit”, nas trocas comerciais envolvendo a Irlanda do Norte e a Grã-Bretanha, promete agravar-se nos próximos dias.

Depois de Londres ter anunciado, na quarta-feira, que iria estender unilateralmente o período de tolerância nos controlos fronteiriços sobre determinados bens que entram na Irlanda do Norte vindos do restante território britânico, a Comissão Europeia prometeu, no dia seguinte, a abertura “para breve” de um processo de infracção ao Reino Unido, por violação do acordo de saída.

“Estamos a preparar [um processo de infracção], será algo que iremos pôr em cima da mesa muito brevemente”, revelou Maros Sefcovic, vice-presidente da Comissão e representante da UE no comité conjunto que supervisiona a implementação do acordo do “Brexit”, numa entrevista ao Financial Times, publicada na quinta-feira à noite.

As perturbações verificadas nos portos norte-irlandeses nestes primeiros meses do ano estão a afectar o fluxo de entrada de produtos na Irlanda do Norte e, por isso, o Governo britânico tem vindo a exigir à UE que estenda o período de tolerância – que termina no final do mês – nos controlos sobre determinados bens, essencialmente agrícolas e alimentares, até 2023.

Face à resposta negativa de Bruxelas, que mantém as negociações em aberto, Downing Street decidiu então agir de forma unilateral, estendendo esse período experimental, que implica menos controlos e menos burocracia, até ao dia 1 de Outubro.

Três caminhos

O ministro para a Irlanda do Norte, Brandon Lewis, garante que a tomada de posição do Governo é “lícita e consistente” com os termos do protocolo irlandês, mas a Comissão Europeia considera, no entanto, que a mesma viola o acordo de saída do Reino Unido da UE.

Nesse sentido, a UE deverá retaliar nos mesmos termos em que o fez em Outubro do ano passado, quando o executivo de Johnson apresentou uma lei, que depois deixou cair, que desobrigava o Reino Unido de vários compromissos políticos e jurídicos assumidos com os 27 e concretizados em tratado internacional 

Num primeiro momento, espera-se que seja enviada uma carta formal de notificação ao Governo britânico, que é o passo inicial de um processo de infracção, e que inaugura um período de dois meses durante os quais Londres tem de responder às acusações que lhe são feitas. Caso as partes não cheguem a acordo sobre a disputa, o caso pode correr até ao Tribunal Europeu de Justiça. 

Uma outra possibilidade é a UE e o Reino Unido accionarem o mecanismo de resolução de disputas previsto no acordo. Esta via implica três meses de consultas e pode incluir a intervenção de um painel de arbitragem, que terá 12 meses para tomar uma decisão – ou apenas seis, se o processo for considerado urgente pelas partes.

Se falharem todas as hipóteses de um entendimento, fica em aberto a possibilidade de uma das partes decretar a suspensão de parte ou da totalidade do acordo ou de impor sanções económicas à outra.

Há ainda um cenário em que pode ser o Parlamento Europeu a assumir o protagonismo e que não deve ser descartado, uma vez que os líderes dos grupos políticos que o compõem decidiram suspender uma decisão sobre o agendamento da data de ratificação do novo acordo de parceria económica e política entre os dois blocos, em resposta à decisão unilateral britânica.

Se os eurodeputados não ratificarem o acordo até ao final de Abril, a sua aplicação provisória termina nessa altura. Isso implicaria que o regime de isenção de taxas aduaneiras aos produtos transaccionados entre UE e Reino Unido, previsto no acordo, cairia por terra e seria substituído pelas regras gerais da Organização Mundial de Comércio. 

Desconfiança europeia

Nos termos do protocolo irlandês, que foi desenhado e ratificado pelas partes para evitar uma fronteira física entre a República da Irlanda (Estado-membro da UE) e a Irlanda do Norte (que integra o Reino Unido britânico) e para manter as transacções comerciais o mais fluidas possível, o território norte-irlandês mantém-se alinhado com as regras do mercado único europeu e dentro do mesmo regime regulatório que a vizinha Irlanda.

Uma vez que o Reino Unido abandonou o mercado único – com os efeitos a começarem a sentir-se depois de terminado o período de transição do “Brexit”, no primeiro dia do ano – foi acordada a realização de controlos alfandegários aos produtos oriundos do restante território britânico com destino à Irlanda do Norte.

Independentemente do desfecho que este processo possa vir a ter, do lado da UE e, particularmente, da República da Irlanda – um dos Estados membros naturalmente mais preocupados com esta disputa – existe muita desconfiança em relação à postura assumida pelo Governo britânico e que vem dos tempos em que as partes ainda estavam a negociar o acordo do “Brexit”.

“O que isto significa, infelizmente, é que a UE percebe claramente que está a negociar com um parceiro em quem simplesmente não pode confiar. E esta não é a primeira vez que isto acontece”, criticou o ministro dos Negócios Estrangeiros irlandês, Simon Coveney, em declarações à RTÉ.

Em Londres não perdoam, no entanto, a Comissão, por ter contemplado accionar em Janeiro o mecanismo previsto no protocolo irlandês para suspender partes do mesmo – e impondo, dessa forma, controlos fronteiriços dentro da ilha irlandesa –, quando receava que a farmacêutica AstraZeneca pudesse violar o contrato de fornecimento de vacinas contra a covid-19, enviando-as para território britânico através da Irlanda do Norte.

O lado unionista norte-irlandês – que defende a eliminação total do protocolo e que está a tentar pressionar Johnson a fazê-lo –, diz que é a UE quem está a ter uma “abordagem beligerante”, com o intuito de proteger o seu mercado único, em detrimento dos Acordos de Sexta-Feira Santa (1998), que puseram fim à guerra civil irlandesa e mantiveram a fronteira aberta.

“O Protocolo foi criado com dois objectivos: proteger o mercado único da União Europeia e proteger o acordo de Belfast”, sublinhou esta sexta-feira, à BBC, a líder do Partido Unionista Democrático e primeira-ministra da Irlanda do Norte, Arlene Foster. “Francamente, está a proteger desproporcionadamente um deles e a prejudicar o outro”.