“PS é muito permeável ao poder económico. E temo que isso aumente com bazuca europeia”

Coordenadora do BE fecha a porta a coligação pré-eleitoral com o PS em Lisboa, mas está disponível para negociar próximo Orçamento do Estado. Avisa, porém: as necessidades do país são agora maiores.

A líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, sublinha, em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença, que o partido está disponível para dialogar com António Costa, mas sem “chantagens”. 

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A líder do Bloco de Esquerda, Catarina Martins, sublinha, em entrevista ao PÚBLICO e à Rádio Renascença, que o partido está disponível para dialogar com António Costa, mas sem “chantagens”. 

A moção da direcção do Bloco à convenção, entregue esta semana, parece marcar a separação de caminhos com o PS. Já não há hipótese de retorno a um diálogo de esquerdas?
Há hipóteses de diálogo à esquerda, e são particularmente importantes, mas é também necessário construir respostas de esquerda, tanto de emergência como estruturais, para a situação que estamos a viver. O PS fez um caminho de afastamento daquilo que tinha sido a legislatura anterior, não quis novos acordos e no Orçamento do Estado (OE) para 2021 não quis negociar sequer medidas sociais que respondessem de uma forma mais universal e consistente aos trabalhadores que ficaram sem emprego durante a pandemia. Afastou-se na Saúde de uma resposta mais forte para garantir os profissionais e instrumentos necessários. Notámos o recuo do PS, mas o que dizemos na moção é que continuamos a considerar que as respostas fundamentais que pusemos em cima da mesa continuam a ser fundamentais na resposta para o país. E aquilo a que nos propomos é construir caminhos e maiorias sobre essas soluções.

Citando a sua moção, a política do PS tem como base uma “estratégia de provocação e de ensaio de crise política” e “sobra apenas a tentativa de chantagem sobre a perda do poder para a direita”. Em que momentos o BE se sentiu chantageado? E em que momentos Costa fez uma provocação para criar uma crise política?
Lembro, por exemplo, que o PS assegurava que exigir uma auditoria ao Novo Banco antes de lá pôr mais dinheiro público provocaria uma crise bancária iminente, que não aconteceu, ou seja, o argumento da chantagem e da provocação, menorizando as propostas do BE, como se o BE estivesse a ser irresponsável. A nossa proposta foi aprovada e nada disso aconteceu. Também recusou propostas, durante o debate do OE2020, que não eram precisas, dizia, porque já estavam lá todos os apoios sociais que o BE queria. E porque é que o BE não aprovava OE? Mal o OE entrou em vigor, era de tal forma evidente que os apoios sociais não eram suficientes, que houve um orçamento suplementar que o BE aprovou – e o Governo, aliás, ainda nem sequer utilizou todas as possibilidades que esse suplementar lhe deu. Poupou 7 mil milhões de euros em relação ao que nós acordámos para investir na protecção social e na Saúde. Sobre o OE2021, o ano está a começar e o Governo já por duas vezes veio corrigir os apoios sociais que estavam no OE e nem sequer de uma forma generosa ou abrangente para combater a pobreza no país – ou seja, o seu OE não era capaz para enfrentar esta crise, que era o que o BE vinha dizendo durante o debate.

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Desde essa altura, em que o BE votou contra o OE, houve alguma reaproximação do Governo ou as vossas relações mantêm-se tensas?
Registamos que o Governo se aproximou de algumas medidas propostas pelo BE, ainda que de forma parcelar, como pagar horas extraordinárias a profissionais de saúde. Do ponto de vista da negociação, o PS vem há bastante tempo a centrar a sua negociação com o PSD. Isso é verdade nas alterações sobre a forma como os fundos europeus vêm a ser gastos, nomeações disfarçadas de eleição para as CCDR [comissões de Coordenação e Desenvolvimento Regional], alterações no Tribunal de Contas, limitação de listas de candidaturas de cidadãos às autárquicas ou o acordo que acabou com os debates quinzenais no Parlamento. Veja o caso do aeroporto do Montijo: agora que a ANAC veio dizer, e bem, que não pode ser feito, porque os pareceres obrigatórios das autarquias são negativos, o PSD salta a dizer: “Por nós, até mudamos a lei para que aquilo que diz a ANAC já não valha nada.” O último ano foi um ano em que o PS contou com o PSD para uma governação crescentemente não ao centro, mas à direita.

E não tentou contar com o BE?
Nós fizemos um enorme esforço negocial. Votámos a favor do suplementar, votámos a favor do estado de emergência, apesar das diferenças.

Mas quando a moção diz que há uma tentativa de “ensaio de crise política” é porque os subscritores estão convencidos de que Costa quer provocar eleições antecipadas.
Não sei. Nós vemos como a direita em Portugal é minoritária, embora estejamos a assistir a uma recomposição da direita com factores de preocupação, até pelo seu cariz de violência. O que ouvimos do PS e de Costa é que, se a esquerda não aceitar ratificar tudo aquilo que o Governo propõe, então estará a abrir caminho à direita. Ora, isso não tem nenhuma sustentação. É uma forma de não discutir a resposta à crise, como se o papel da esquerda fosse apoiar qualquer coisa que o Governo propõe, por causa de uma putativa direita que estaria para chegar ao poder, o que nem sequer é verdade. O debate democrático não pode ser feito dessa forma.

Se aquilo que o Governo tiver para oferecer for pouco, então é preferível ir para eleições antecipadas?
O pouco ou muito não define nada: é o tipo de resposta. Para a EDP, por exemplo, foi de mais, até se permitiu que não pagasse 110 milhões de euros de imposto de selo. O problema é da qualidade da resposta e a quem se responde em cada momento. Eu já disse em tempos e o PS não gostou muito que o PS é muito permeável ao poder económico, mas, na verdade, é. A quem é que nós respondemos? Quem é a nossa prioridade?

Acha que essa permeabilidade aumenta com a bazuca europeia?
Temo que aumente. Não há abertura do Governo para alterar relações estruturais no país, para que estes investimentos europeus tenham uma repercussão real nas condições de vida das classes trabalhadoras. Quando a lei laboral não tem nenhuma alteração, os factores de maior precarização se mantêm e as grandes empresas podem fazer distribuição de dividendos, ao mesmo tempo que despedem precários, corremos o risco de estar a distribuir fundos a determinados interesses económicos sem que isso seja reproduzido em emprego de qualidade com salário digno. Vamos estar a construir mais resposta igual àquela que já sabemos que tem fortes debilidades.

O BE não receia eleições antecipadas, se estiver na sua mão apoiar o Governo?
Acho estranho que numa crise como a que estamos a viver um governo ou um partido se dedique a cenarizar eleições antecipadas, em vez de cenarizar soluções para a crise. Um governo que não tem maioria absoluta tem a responsabilidade de negociar soluções, é assim que se faz. Não percebo porque é que essa questão [de eleições antecipadas] tem de se colocar: é uma forma de desviar atenções sobre o que devemos fazer, sobre como responder às pessoas desempregadas que neste momento não têm nenhum apoio, às famílias que têm moratórias sobre a hipoteca das suas casas e que vão acabar, como vamos ajudar empresas à beira da falência.

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O BE continua disponível para discutir esses “como” e negociar também OE 2022?
Nunca perdemos disponibilidade para negociar. Mas o objectivo da negociação não pode ser “ou aceitam isto ou não há caminho”. Nós continuamos com abertura, mas com abertura para discutir soluções.

As exigências do BE no OE2022 serão superiores às do OE2021?
Há mais necessidades numas matérias, noutras serão diferentes. Do nosso ponto de vista, continua a ser preciso equilibrar a legislação laboral, garantir um outro patamar de protecção social (ou seja, na forma como se calcula a condição de recursos), ter serviços públicos que respondam às necessidades de hoje e a transparência no uso de dinheiros públicos e na relação com o sistema financeiro e os grupos económicos.

O PCP tem-se contentado com pouco por parte do Governo?
Temos tido visões e análises diferentes. 

Há momentos em que parece que os papéis se inverteram, ou seja, o PCP parece o BE de 1999, que apareceu para dialogar com o PS, e o BE está a tornar-se um partido de protesto.
O BE é um partido que dá soluções e nunca foi um partido de protesto. Isso é uma caricatura que se faz das reivindicações da esquerda que eu não subscrevo. 

A moção da direcção do Bloco recusa coligações autárquicas com o PS. Isto estende-se também a Lisboa, ou o acordo do BE com o PS em Lisboa não está a correr bem?
O acordo em Lisboa é pós-eleitoral e tem sido um bom trabalho, faço uma avaliação muito positiva. A relação entre BE e PS em Lisboa seguramente também tem os seus momentos de maior tensão. Há matérias em que não se chegou aonde se queria, como na habitação. 

Mas estando em marcha entendimento pré-eleitoral à direita, não poderia haver o mesmo à esquerda?
A direita é muito minoritária em Lisboa. O acordo BE-PS em Lisboa foi importante e precisou da apresentação de programas diferentes para se poder concretizar. Quando uma coisa corre bem, devemos tirar a lição de que se deve mantê-la. Manter autonomia das candidaturas é importante, sem fechar a porta a entendimentos após as eleições.

A esquerda não teria mais força eleitoral, se concorresse coligada?
Faremos o caminho que achamos que é importante que é apresentar uma visão para a cidade.

Não tem havido agora conversas entre o BE e o PS?
Há quatro anos, houve algumas conversas informais ao nível das direcções. Neste momento, não há, porque fazemos todos a mesma apreciação.

O BE já tem candidato a Lisboa?
No momento próprio, comunicaremos. Vamos aprovar a nossa estratégia autárquica no fim-de-semana e uma das nossas grandes causas é a habitação, problema estrutural do país.

É o sector que tem mais investimento previsto no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR).
O PRR é importante, mas causa algumas perplexidades. O Governo transferiu para o PRR boa parte dos investimentos que estavam previstos. O PRR, em vez de acrescentar, desloca o que estava previsto, permitindo menos contrapartida nacional e, portanto, permitindo que não seja investido tanto quanto seria possível. O Governo parece usar o PRR mais como uma forma de limitar o investimento público do que como uma verdadeira injecção de investimento no país. Vê-se isso na ferrovia, nos investimentos na Saúde. O PRR, por isso, não tem a força que era necessária. Precisamos de investimento a sério.

O próprio primeiro-ministro baixou as expectativas, chamando-lhe “vitamina” em vez de “bazuca”. Como viu isso?
Tem que ver com esta desistência de acrescentar a quantidade de investimento de que o país precisa. 

Costa anunciou esta semana que quer lançar um debate sereno para o pós-2022 ainda no final do semestre da presidência europeia sobre o Tratado Orçamental (TO). Acredita que Costa queira flexibilizar o quê? E o BE o que quer flexibilizar?
O BE opôs-se ao TO desde o primeiro momento. Deve-se corrigir o enorme erro que é um tratado que diz que os Estados não podem investir quando há uma crise. Isto é um absurdo. Ora, um tratado que nunca serve quando há uma crise e tem de ser suspenso é um tratado que não serve em dia nenhum. Para além disso, há um silêncio preocupante do Governo, na presidência europeia, e tem que ver com as vacinas. Lembro os apelos de António Guterres, que tem vindo a dizer que a crise exige a universalização da vacina. 

Defendeu na terça-feira que a UE devia quebrar as patentes para universalizar as vacinas. Isso é possível?
A UE comprou e bem as vacinas ainda antes de elas existirem, para que fossem desenvolvidas. O que está errado é que os contratos dizem que a UE paga e as farmacêuticas disponibilizam quando puderem, o que lhes permite negociar com outros países e a outros preços diferentes do contrato inicial. A Comissão Europeia deixou-se nas mãos das farmacêuticas. Historicamente já houve momentos em que se ultrapassou esta chantagem das farmacêuticas e se massificou a produção de medicamentos, como, por exemplo, no VIH-sida. Toda a legislação sobre propriedade industrial tem mecanismos sobre quando há um interesse público muito grande em causa. É pouco compreensível que, tendo Portugal a presidência da UE, este não seja um tema fundamental para pôr em cima da mesa. É bem tempo de o fazer e a UE tem uma responsabilidade de o fazer.

Esse silêncio de Costa terá que ver com aquilo que dizia de o Governo não ser forte com os fortes?
Julgo que aqui talvez tenha mais que ver com uma necessidade de nunca se desalinhar das maiorias conjunturais na UE que faz com que, quando é preciso, se aprove o TO a correr; quando há uma maioria a questionar, já se pensa que, se calhar, se pode pôr isso na agenda. Um país não deve andar a reboque das maiorias conjunturais, mas deve ter uma linha de defesa da democracia. Só colocando questões difíceis se arranjam soluções.

O Governo também ainda não esclareceu sobre os pagamentos de custos (electricidade, Internet) aos trabalhadores em teletrabalho. O Bloco está a pensar tomar alguma medida?
Sim. Vamos apresentar uma iniciativa legislativa sobre esta matéria, uma vez que o Governo ainda não avançou. A generalização do teletrabalho não é uma boa solução. Há três balizas: uma é a necessidade de os custos não ficarem em cima dos trabalhadores, uma vez que há até empresas que estão a lucrar com o facto de passarem custos para os próprios trabalhadores; outra, as condições de ligação do trabalhador com a empresa, aquilo que é acordado, em termos de teletrabalho, deve ser definido por instrumentos de regulação colectiva e não por acordos individuais entre trabalhador e empregador; e queremos proteger todos os trabalhadores, quer do sector privado, quer na função pública.

Ainda há pouco falou das moratórias como uma bomba-relógio. Devem ser estendidas até quando? 
Até a recuperação começar. Se continuam sem rendimentos ou com o restaurante fechado, como é que as pessoas vão resolver o problema? E depois não pode haver um dia em que as pessoas são confrontadas com a dívida: tem de haver planos de pagamento faseados. As moratórias, assim, não foram para que se pudesse recuperar no futuro, foi só para adiar uma falência. Isso seria o desastre económico.