Vinte anos depois do colapso da ponte

Apesar de todas as medidas introduzidas depois de 20 anos do trágico acidente que vitimou 59 pessoas, é provável que um cenário semelhante possa repetir-se?

A maioria das pontes colapsam devido à combinação simultânea de vários fatores e durante (ou depois) de um evento natural extremo. Foi assim em Portugal em 4 de março de 2001 e recentemente em Itália com a ponte de Génova (2018). O evento natural tem a particularidade de explorar vulnerabilidades estruturais escondidas. Na Ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, a vulnerabilidade ao nível das fundações foi exposta com o aumento do caudal da água no rio Douro durante um período de cheia. A queda do tabuleiro deveu-se ao colapso de um dos pilares em resultado do fenómeno de erosão localizada no leito aluvionar, resultando na formação de cavidades junto da fundação do pilar. Note-se que a erosão resulta da existência de obstáculos (pilares e encontros) no seio do escoamento da água do rio.

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A maioria das pontes colapsam devido à combinação simultânea de vários fatores e durante (ou depois) de um evento natural extremo. Foi assim em Portugal em 4 de março de 2001 e recentemente em Itália com a ponte de Génova (2018). O evento natural tem a particularidade de explorar vulnerabilidades estruturais escondidas. Na Ponte Hintze Ribeiro, em Entre-os-Rios, a vulnerabilidade ao nível das fundações foi exposta com o aumento do caudal da água no rio Douro durante um período de cheia. A queda do tabuleiro deveu-se ao colapso de um dos pilares em resultado do fenómeno de erosão localizada no leito aluvionar, resultando na formação de cavidades junto da fundação do pilar. Note-se que a erosão resulta da existência de obstáculos (pilares e encontros) no seio do escoamento da água do rio.

Esta tragédia marcou um momento de viragem na política de acompanhamento das pontes. Antes, havia pontes que não eram sujeitas a inspeções periódicas; nas inspecionadas, muitas vezes os dados eram registados em manuscritos próprios, que poderiam ser facilmente perdidos ou danificados; as inspeções subaquáticas não eram prática corrente. Após o colapso, a extração de inertes foi suspensa no rio Douro e, de uma forma geral, as principais entidades responsáveis (Infraestruturas de Portugal, Brisa, etc.) procederam à atualização dos mecanismos e procedimentos de acompanhamento das pontes.

Apesar de todas as medidas introduzidas depois de 20 anos do trágico acidente que vitimou 59 pessoas, é provável que um cenário semelhante possa repetir-se? Há um axioma na engenharia civil que se aplica bem ao que tem sido feito: “o risco minimiza-se, mas não se anula.” Por parte das referidas entidades, o risco tem sido minimizado, gerido e controlado, numa perspetiva de que os acidentes naturais não podem ser evitados, mas que a tragédia está a ser minimizada.

Hoje, as principais entidades têm equipas próprias para fazer inspeções, executadas por técnicos com formação específica. A generalidade das pontes está sob programas de inspeção periódica, com frequência que pode variar aproximadamente entre dois a seis anos. A avaliação da integridade das fundações é realizada através de inspeções subaquáticas.

Fotogaleria

Passaram 20 anos desde uma das maiores tragédias envolvendo obras públicas em Portugal. Quase duas décadas depois, as feridas continuam por sarar junto das famílias que não puderam chorar os seus entes-queridos. 56 pessoas morreram, 36 corpos nunca foram encontrados. O acidente ocorreu às 21h15 de 4 de Março de 2001. (fotogaleria actualizada a 4 de Março de 2021)

Manuel Roberto, Nelson Garrido, Paulo Pimenta e Fernando Veludo

Em 2001, nem todas as entidades possuíam sistemas automáticos de gestão, que no essencial consistiam numa base de dados computacional e de acesso local. Atualmente, a generalidade das entidades utiliza uma espécie de 2.ª geração dos sistemas de gestão, que lhes permite inventariar e gerir a condição estrutural e planear ações de conservação.

Está em desenvolvimento uma espécie de 3.ª geração dos sistemas de gestão, onde se preveem ganhos de eficiência com a utilização, por exemplo, de tablets para introdução automática da informação durante as inspeções, acesso remoto, intercomunicabilidade e vertente de business intelligence com módulos de previsão probabilística.

Algumas entidades também já começam a utilizar uma política mais alargada de gestão de ativos, o que lhes permite ter uma visão holística e coordenada das intervenções em diferentes componentes: pavimentos, obras de arte (pontes, túneis, etc.), equipamentos (sinalização) e gestão da operação.

Contudo, há ainda pontes que estão de fora deste esforço de inspeção regular, nomeadamente as pontes sob domínio dos mais de 300 municípios. Embora alguns já tenham tomado a iniciativa de desenvolverem a sua própria estratégia, a maior parte dos municípios tem limitações financeiras, bem como falta de capacidade orgânica no seio dos mesmos. O Governo pode delegar competências, mas não pode delegar responsabilidades, pelo que lhe cabe propor um programa nacional de inspeção de pontes sob domínio dos municípios, de forma a identificar a condição operacional deste tipo de infraestrutura. Note-se que muitos municípios desconhecem o estado de conservação das infraestruturas que são da sua responsabilidade e, em alguns casos, não têm o seu inventário completo.

Apesar dos esforços que têm sido feitos, o acompanhamento da condição estrutural das pontes, especialmente nas inspeções de rotina, está ainda muito suscetível à interpretação humana. Embora hoje já se utilizam novas tecnologias, tal como drones para tirar fotografias e fazer levantamento de fissuras, a comunidade científica tem de desenvolver mais tecnologia para minimizar o risco do erro humano. A 4.ª revolução industrial irá certamente trazer, num futuro próximo, mais tecnologia para deteção inteligente de anomalias e para digitalização automática da informação.

Há ainda alguma tecnologia de monitorização que poderia ser mais utilizada pelas entidades. Mas para isso é essencial o desenvolvimento e implementação de um regulamento técnico para monitorização da integridade estrutural das pontes. A China desenvolveu o seu em 2014. Na Europa há desenvolvimentos para transformar um conjunto de recomendações técnicas em regulamento. Este é um marco importante na aplicação de técnicas bem estabelecidas de monitorização, nomeadamente a instalação de dispositivos que permitem controlar a profundidade do leito.

Para além disso, é preciso estudar o efeito das alterações climáticas nas pontes. Um dos efeitos que se prevê para Portugal é, precisamente, o aumento da frequência das chuvas intensas por períodos curtos de tempo, causando especialmente maiores caudais nos rios das bacias hidrográficas mais pequenas, inundações e, no limite, mais erosão do leito junto das fundações. São necessários mais estudos para se desenvolverem estratégias de adaptação que sejam implementadas hoje, para assim evitarmos consequências desastrosas no futuro. Aqui não é de excluir a construção de obras de proteção do leito contra fenómenos de erosão junto dos pilares. Em paralelo, é necessária uma responsabilização das entidades coordenadoras da gestão dos recursos hídricos, com vista a impedir intervenções que conduzam à destruição do equilíbrio dinâmico dos rios. As cheias e as pontes não são um casal harmonioso.

Passados 20 anos sobre o colapso da Ponte de Hintze Ribeiro, devemos reconhecer o esforço das principais entidades, mas existem ainda muitos desafios para aumentarmos a resiliência das nossas pontes.

O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico