Luta de Classes 2.0
A economista Susana Peralta vive num mundo diferente do meu, se acha que todas as pessoas do sector dos serviços estão no bem-bom económico, não perderam rendimentos e são das mais bem pagas, pelo que merecem uma espécie de imposto solidário para ajudar os que mais têm sofrido.
Nos últimos dias assistimos ao renascimento localizado de uma variante nacional do que não é abusivo entender como um estímulo à luta de classes por causa da pandemia e das condições de trabalho de diferentes segmentos da população.
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Nos últimos dias assistimos ao renascimento localizado de uma variante nacional do que não é abusivo entender como um estímulo à luta de classes por causa da pandemia e das condições de trabalho de diferentes segmentos da população.
De forma extensiva, em entrevista ao jornal I, a economista Susana Peralta dissertou sobre o que considera serem os privilégios de uma alegada “burguesia do teletrabalho” que, no seu entender, é “uma parte substancial das pessoas em Portugal que não perderam rendimentos, (…) todas as pessoas do setor dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas” e que, ainda na sua opinião “está no bem-bom do ponto de vista económico”, pelo que “podia-se perfeitamente ter lançado um imposto extraordinário sobre essas pessoas para dividirmos o custo desta crise”. Estas são citações directas da referida entrevista e é uma pequena mas reveladora amostra de uma grande confusão na compreensão do que é a realidade do teletrabalho, da própria natureza da divisão do trabalho no mundo actual e, como consequência, na utilização de conceitos que têm um bom potencial para dramatismo mediático, mas escasso rigor descritivo ou analítico.
Apoiando a ideia da economista, David Pontes, no PÚBLICO, acrescenta uma espécie de argumento moral à proposta, afirmando que “numa sociedade que não queira ter vergonha de se olhar ao espelho, é justo que os que foram sacrificados mereçam o apoio de quem menos sofreu”. Mas não é muito claro sobre quem acha que se deve sentir envergonhado, o que é pena.
Seguindo o conselho de David Pontes, vou deixar para segundo plano a questão do termo “burguesia”, embora a sua utilização não tenha sido inocente e seja mesmo reveladora de um tipo de pensamento e de uma forma de encarar a sociedade. Vou antes começar por questionar o modo como é representado o mundo do (tele)trabalho e, muito em particular, a afirmação de que a manutenção dos rendimentos e de uma situação de “bem-bom do ponto de vista económico” é uma marca de “todas as pessoas do setor dos serviços que, aliás, são as pessoas mais bem pagas”.
Isto está profundamente errado pois foi no sector dos serviços que se deu o encerramento de um maior número de lojas e de pequenas e micro-empresas, desde a muito citada restauração a estabelecimentos de pequena dimensão que não vendem produtos considerados de primeira necessidade (de barbeiros às lojas de roupa, de floristas a lojas de bairro de todo o tipo). Isto para não falar das grandes cadeias de lojas que aproveitaram a situação para dispensar ou reduzir os rendimentos de grande parte dos seus funcionários. Posso estar errado, mas muito desses funcionários estão longe de ser dos mais bem pagos no mercado de trabalho, em particular o “pessoal de loja” que trabalha em condições contratuais bem precárias.
A economista Susana Peralta vive num mundo diferente do meu, se acha que todas as pessoas do sector dos serviços (foi ela a afirmá-lo de modo claro, não fui eu) estão no bem-bom económico, não perderam rendimentos e são das mais bem pagas, pelo que merecem uma espécie de imposto solidário para ajudar os que mais têm sofrido. Julgo entender que na sua cabeça o sector dos serviços está modelado à imagem de algumas elites e quase apostaria singelo contra dobrado que o seu olhar se centra num sector muito específico dos serviços.
É certo que se colocaram outras possibilidades de aumento da receita fiscal, mas só falou na TAP, tendo-se certamente esquecido que existem grandes empresas (como as de telecomunicações, de material informático ou de entregas ao domicílio, para me reduzir aos casos mais óbvios) a lucrar com a situação da pandemia. Não sei se será “impopular” ou “radical” optar por pedir um contributo a quem beneficiou e facturou milhões adicionais, mas parece-me mais justo do que andar a encenar um sistema redistributivo entre remediados e pobres, deixando certas “aristocracias da pandemia” de fora.
Vou finalizar com uma crítica do mesmo tipo que fiz aos promotores da carta aberta pela reabertura rápida das escolas, de que a economista Peralta faz parte: sejam bem-vindos à luta por uma sociedade mais justa e menos desigual. Em outras ocasiões não demos pela vossa presença, como quando sectores inteiros foram objecto de uma redução substancial de rendimentos logo a partir de 2005. Mas mais vale chegarem tarde à luta pela justiça social e económica do que nunca. Agora só falta algum rigor na descrição e análise da realidade sobre a qual lançam as vossas propostas.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico