Há um ano começámos a contar os casos
Não haveria forma de ganhar, mas podíamos ter perdido por menos esta clivagem entre o “eu” e o “nós”, se tivéssemos sido mais agressivos na compreensão.
Há um ano começámos a contar os casos. E depois fomos contar as camas e os ventiladores. E só depois é que compreendemos que tínhamos de contar as pessoas com quem podíamos contar para tratar de pessoas. A sorte de não ir à frente levou-nos a ter tempo de deixar o medo funcionar. Somos um povo emotivo, e o sofrimento de Itália salvou-nos.
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Há um ano começámos a contar os casos. E depois fomos contar as camas e os ventiladores. E só depois é que compreendemos que tínhamos de contar as pessoas com quem podíamos contar para tratar de pessoas. A sorte de não ir à frente levou-nos a ter tempo de deixar o medo funcionar. Somos um povo emotivo, e o sofrimento de Itália salvou-nos.
A partir daí, fomos construindo a leitura de que o desafio era um pouco mais duro e mais longo do que uma quarentena de 14 dias. Quem teve o cuidado de olhar, para mais do que para si próprio, foi percebendo que além da contagem de mortos, e dum olhar comparativo para o mundo, era preciso encarar de frente as terríveis fragilidades dos que sofriam os danos colaterais do combate à pandemia.
A consciência da magnitude do desafio aumenta e também começa a luta. A luta para perder o medo, a luta para mostrar ao mundo que estamos de braços abertos para receber turistas e a luta entre saúde e economia.
O embate nos hospitais que fizeram das tripas coração transformou-se num “não foi assim tão mau”. A vontade de viver com o sol a bater levou-nos a querer esquecer que não somos ninguém perante a natureza e a vontade que o vírus tem de encontrar corpos para se fazer multiplicar. Muito quisemos saber se a máscara protegia os pulmões de quem a utiliza, para chegar à simples conclusão que a máscara protege essencialmente os outros da nossa expiração potencialmente infectada.
Os turistas foram entrando e saindo, as esplanadas encheram-se e parecia estar terminado o pesadelo que entristecia o mundo. Mas as crianças têm de ir à escola e o país tem de voltar a trabalhar, e a luta da economia destronava o que foi uma visão outrora centrada na saúde, e, assim, Setembro e Outubro foram os meses de confirmação de que não podíamos fugir da natureza, de que qualquer preparação seria sempre insuficiente, com a agravante de que entregámos aos “milagres” a leitura do passado ainda tão recente, quando deveríamos ter apostado tudo na formação e na informação de todos os portugueses.
E como continuámos a achar que a luta era entre a saúde e a economia, esquecemo-nos de lutar contra o vírus, a sua compreensão e a imperiosa compensação económica dos que tinham de fechar portas para que se salvassem vidas e controlasse a pandemia. Portugal foi chorando a velocidades diferentes, entre os que perdiam a vida e os que perdiam o emprego e a capacidade de alimentar a sua família. E enquanto nos tentavam explicar que o Natal tinha de existir, não conseguiram perceber que os únicos países que conseguiram mitigar as perdas da economia foram os que controlaram agressivamente a pandemia.
Mas a selva de opiniões da democracia que tanto gostamos prejudicou o nosso discernimento. O ruído tirou-nos o foco e tentámos aumentar o armamento da guerra da saúde contra a economia, a cultura e a educação, mas até hoje ainda não percebemos que a luta não é essa. A luta é de todos pela cidadania. Perder a luta contra a pandemia seria enfraquecer os quatro pilares da sociedade que se pretende humana: o ensino, a justiça, a saúde e a segurança, não esquecendo que a arte é que nos explica quem nós somos.
Não haveria forma de ganhar, mas podíamos ter perdido por menos esta clivagem entre o “eu” e o “nós”, se tivéssemos sido mais agressivos na compreensão. Os bombeiros não descansam enquanto não se apaga o fogo, e, se não compreendermos isso, arde-nos o país todo, porque na luta contra os incêndios não há empates nem meias vitórias. Para os profissionais de saúde deixar as pessoas morrer sem ir à luta não é um empate, é uma derrota. E por estas vitórias vamos até cair para o lado. Muitos caíram a tentar que o fogo ficasse mais pequenino, mas, se não formos até ao fim com a luta, perdemos os que lá estão e queimamo-nos a todos.
Aprendemos muito sobre o vírus, a doença e sobre saúde, mas explicaram-nos mal qual era a luta. A luta é por um mal menor, é para que se salvem vidas, é pelo bem comum, que foi para isso que construímos democracias, e teríamos de ter feito melhor para compreender que o tecido que compõe a nossa sociedade tem a força das suas fibras mais fracas, que nós não soubemos proteger, porque ainda não tiraram do meu ordenado. Pandemia, impostos, bem comum e cidadania... Acho que deveríamos ter sabido conjugar estas palavras na mesma frase há um ano, até aos dias de hoje.
A luta dos hospitais só terá valido a pena, se soubermos segurar e compensar os que salvaram vidas, perdendo o seu negócio ou o seu emprego. O tema é saúde, mas o desafio é cidadania. Um ano e nem isso aprendemos. Até que a vacina nos liberte, ainda é tempo. E será sempre tempo de fazermos melhor.