A odisseia das doenças raras

Estas doenças não constituem alvos financeiramente muito promissores em termos de mercado – para cada uma os doentes são poucos – e por isso nem sempre são alvo de investimento em investigação e desenvolvimento por parte de empresas farmacêuticas.

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As doenças raras são raras. Cada uma afecta relativamente poucas pessoas e por esse motivo podem ser desconhecidas da maioria de nós. Somadas, no entanto, as mais de 6 mil doenças raras que se conhecem actualmente chegam a afectar a vida de uma multidão: cerca de 300 milhões de pessoas em todo o mundo. A maioria dessas pessoas passa alguns anos – em média cinco entre o início da sua doença e o seu diagnóstico. Temos até uma expressão para esse longo tempo de angústia e incerteza, que frequentemente passa por um primeiro diagnóstico errado (em 40% dos doentes), múltiplos exames, consultas a vários especialistas e tentativas de intervenção: chamamos-lhe “a odisseia do diagnóstico”.

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As doenças raras são raras. Cada uma afecta relativamente poucas pessoas e por esse motivo podem ser desconhecidas da maioria de nós. Somadas, no entanto, as mais de 6 mil doenças raras que se conhecem actualmente chegam a afectar a vida de uma multidão: cerca de 300 milhões de pessoas em todo o mundo. A maioria dessas pessoas passa alguns anos – em média cinco entre o início da sua doença e o seu diagnóstico. Temos até uma expressão para esse longo tempo de angústia e incerteza, que frequentemente passa por um primeiro diagnóstico errado (em 40% dos doentes), múltiplos exames, consultas a vários especialistas e tentativas de intervenção: chamamos-lhe “a odisseia do diagnóstico”.

No final dessa odisseia nem sempre há, no entanto, o descanso do herói. Muitas vezes o diagnóstico traz apenas a possibilidade de atribuir um rótulo, porque o conhecimento escasso sobre a doença não permite fazer prognósticos certeiros nem oferecer terapias eficazes. No caso das doenças raras de origem genética (cerca de dois terços) há alguma mais-valia nesse “rótulo” – além de se identificar a causa primária da doença, o diagnóstico pode permitir aos familiares directos e ao próprio ter uma ideia do risco de aparecimento de novos casos na família. A combinação das novas metodologias genéticas com as potencialidades actuais da procriação medicamente assistida permite, por exemplo, que as famílias possam imaginar e concretizar um futuro sem a doença, através do diagnóstico pré-implantação.

O Dia Internacional das Doenças Raras celebra-se, simbolicamente, a 29 de Fevereiro – um dia raro. Nos anos não bissextos marcamos a efeméride no dia 28, como compromisso. Usamos este dia para lançar um alerta e para reflectir sobre os desafios que estas doenças nos colocam como sociedade e sobre o caminho que ainda nos resta percorrer para que quem é afectado por elas esteja, pelo menos, em posição de igualdade com quem sofre de uma doença mais comum. Pensando no nosso país, isto passa por alguns aspectos fundamentais, que vou procurar resumir a três.

O primeiro é conhecermos os doentes que temos. É urgente fazer um registo das doenças raras, que nos permita ter ideia das nossas necessidades em termos de cuidados de saúde, de apoios sociais e educativos, de apoios aos cuidadores e estabelecer prioridades para a investigação a desenvolver. Estes registos estão em curso noutros países europeus e temos que integrar esse esforço conjunto numa perspectiva de facilitar a partilha de informação. Quando se conhecem apenas algumas centenas ou milhares de pessoas com uma doença em todo o mundo, a partilha de informação é fundamental. Felizmente as ferramentas informáticas de que necessitamos para isso estão disponíveis, falta apenas a decisão de investirmos nessa iniciativa. Deste aspecto faz também parte o acesso ao diagnóstico genético, que ajuda na identificação da causa de uma grande parte dos casos de doença rara. Aqui, importa garantir a todos o acesso às novas metodologias de diagnóstico por sequenciação de ADN de “nova geração”, que veio multiplicar as probabilidades de sucesso e permitir encurtar drasticamente o tempo necessário à concretização de um diagnóstico – e assim abreviar a tal odisseia.

O segundo ponto é organizarmo-nos para oferecer uma entrada simplificada e acesso a cuidados integrados para pessoas com doenças raras e seus cuidadores – uma espécie de “loja do cidadão raro” em que se encaminhassem as pessoas recém-diagnosticadas no que respeita a um conjunto de necessidades – de informação sobre a sua doença, para começar, de acesso a centros de referência, de acesso a apoios materiais, sociais e educativos, de acesso a terapêuticas e intervenções especializadas, entre outros.

O terceiro é fazermos um investimento público na investigação em doenças raras. Estas doenças não constituem alvos financeiramente muito promissores em termos de mercado – para cada uma os doentes são poucos e por isso nem sempre são alvo de investimento em investigação e desenvolvimento por parte de empresas farmacêuticas. A nível europeu existe o compromisso, que Portugal subscreveu, de se encontrar até 2030 terapias para 1000 doenças raras. Para isso, temos que investigar estas doenças numa perspectiva clínica, mas também das ciências fundamentais, e investir em traduzir para a clínica as descobertas que se vão fazendo nos laboratórios pelo nosso país fora.

No que respeita a fármacos, que levam muitos anos a desenvolver e requerem muito investimento, uma estratégia que tem sido proposta para as doenças raras, nomeadamente a nível europeu, é a da atribuição de novos usos a fármacos que já existem, aquilo que em inglês se denomina re-purposing. Isso permite cortar etapas, por exemplo a da verificação da segurança do uso em humanos, e diminuir custos. No entanto, e dado que alguns dos fármacos para os quais se descobre uma nova aplicação numa doença rara, podem estar fora de patente e ser economicamente menos interessantes para investidores privados, o investimento no seu estudo clínico requer uma estratégia pública. Este investimento público tem que ser visto na perspectiva de no futuro se vir a proporcionar uma melhor qualidade de vida aos cidadãos afectados por uma doença rara, mas também, caso o fármaco se revele eficaz, do que se poderá vir a poupar em cuidados de saúde e de perda de produtividade.

Do ponto de vista científico, a investigação em doenças raras tem servido de farol para o desenvolvimento daquilo se chama a medicina de precisão – um modelo da prática da Medicina em que se começa por identificar claramente a causa da doença e se desenvolve um tratamento dirigido de modo muito preciso a essa causa. Isto implica caracterizar bem os doentes e não os tratar todos do mesmo modo, desenvolver modelos de cada tipo de doença e usá-los para descobrir fármacos específicos, com potencial para serem mais eficazes e seguros.

Em suma, as doenças raras trazem desafios muito importantes, mas trazem também a oportunidade de desenvolvermos estratégias que vão melhorar toda a prática de cuidados de saúde no país. Aproveitemos.