Quando eu descobri a negritude

Foi no jardim-de-infância que percebi que era diferente e que isso era mau. Rapidamente entendi que ser negro era algo horrendo e vil e não queria ser associada a tais características, porque me pintariam através de uma lente cruel. Então, achei que a solução passava por pintar-me e chegava a casa a exigir aos meus pais que me tornassem “tom de pele”. Eles não sabiam o que dizer.

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Miguel Feraso Cabral

Há um momento na vida de todas as crianças afrodescendentes  em que descobrimos o que o mundo nos traduz como uma verdade penosa sobre nós próprios. A negritude, um termo cunhado pelo francês Aimé Césaire que pretendia reivindicar a identidade negra e a sua cultura perante a cultura francesa dominante e opressora, é uma verdade que aprendemos sobre o mundo à nossa volta.

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Há um momento na vida de todas as crianças afrodescendentes  em que descobrimos o que o mundo nos traduz como uma verdade penosa sobre nós próprios. A negritude, um termo cunhado pelo francês Aimé Césaire que pretendia reivindicar a identidade negra e a sua cultura perante a cultura francesa dominante e opressora, é uma verdade que aprendemos sobre o mundo à nossa volta.

Para começar, recordo-me perfeitamente de ter percebido que havia algo de diferente na minha experiência social. Tal é inevitável quando somos nascidos da imigração recente e quando chegamos a um país que nos é estranho e, principalmente, no qual somos estranhos.

Foi no jardim-de-infância que percebi que era diferente e que isso era mau. Rapidamente entendi que ser negro era algo horrendo e vil e não queria ser associada a tais características, porque me pintariam através de uma lente cruel. Então, achei que a solução passava por pintar-me e chegava a casa a exigir aos meus pais que me tornassem “tom de pele”. Eles não sabiam o que dizer.

Fui percebendo, enquanto ia crescendo, que a minha diferença era contraditória com o que era esperado de mim. Quando era das melhores alunas nas turmas em que estava (o meu pai sempre disse que tinha que me esforçar “mais do que os outros”) e a minha mãe ia ver as pautas ouvia comentários como “ainda por cima é brasileira” (sendo que não temos nada de brasileiro, não parecíamos só ser “de cá”). Um colega de turma atirou-me, uma vez, a expressão “tu és preta” e isso bastou para que me cobrisse de vergonha, uma simples constatação da realidade exterior, pela maldade com a qual as palavras tinham sido proferidas.

Também nunca senti que podia escolher ser meramente mulher, era sempre bem mais complexo do que isso. Quando me apercebia que a experiência tradicional feminina (ou mesmo feminista) me dizia ridiculamente pouco, que as minhas experiências de assédio eram muito diferentes das mulheres à minha volta, pela forma como todas estas características sociais se embrenhavam no que se tornava, por vezes, o medo de andar na rua.

O que foi mais curioso à medida que ia aprendendo sobre o mundo ou, por outras palavras, à medida que fui crescendo, era o quão plástica era a minha posição social: por vezes demasiado clara, outras demasiado escura, demasiado “de cá” ou demasiado estrangeira. Isto força-nos a concluir que todas estas categorias não são mais do que socialmente construídas, que são como fumaça que se desfaz no ar quando confrontada com a força da realidade. 

Durante muitos anos recordo-me de falar sobre isto e ouvir respostas que diziam que “racismo não existe em Portugal” e que isso “eram coisas dos Estados Unidos”. Chegava à conclusão, portanto, que estava a ser sensível demais e que só podia estar a ficar louca. Não havia outra possibilidade se eu experienciava algo invisível, não era mais do que um D. Quixote dos tempos modernos a lutar contra o demónio da minha mente.

Decidi ler só para tirar as teimas. Ainda bem que o fiz, pois foi na educação que encontrei a capacidade de libertação, não só psicológica, mas das cadeias geracionais que estamos a tentar quebrar. Rapidamente se tornou claro que o racismo existia e estruturava a nossa sociedade, mas que quem o sofria não era capaz de falar sobre isso na maioria das vezes. Não só porque se revelam como as pessoas mais flageladas pelo sistema socioeconómico, mas porque também se vêem forçadas a lutar contra a colonização das suas mentes, que sucedeu a colonização dos corpos. 

Considero particularmente importante ressalvar que a luta anti-racista nunca se tratou de criar supremacia de um grupo em detrimento de outro. Não podemos esquecer que a injustiça em qualquer sítio é uma ameaça à justiça em todo o lado.

Da luta contra a desigualdade nasceu uma celebração anual: o Black History Month nos Estados Unidos, conquistado à custa de trabalhos de vidas inteiras. Em Portugal falta fazer esta tradução política e entender como criar reivindicações anti-racistas adequadas ao contexto sociocultural nacional que consiga conquistar a almejada maioria social. 

Porque esta resposta é urgente. É absolutamente angustiante que se tenha de ir à rua para exigir nada mais do que o direito a estar vivo, o direito a existir e a falar.

E desengane-se quem acha que nessas manifestações se ouvem brados de lamento. São gritos de libertação. Esta é uma luta que levaremos até ao fim.