Na Rua dos Lagares pousam-se armas mas não as enterram
As quatro famílias que ainda não tinham solução habitacional vão para casas municipais. Termina assim uma história com quatro anos que mexeu com a política lisboeta. Mas Carla, Alessandra e Rosário não têm vontade de parar.
Quando um dia se escrever a história dos anos em que Lisboa caiu no goto do mundo e se passar em revista todas as coisas boas e más que aconteceram à cidade nesse período, certamente haverá por lá um parágrafo, ou um capítulo, sobre os moradores de um certo prédio num certo bairro. No número 25 da Rua dos Lagares, a necessidade fez despontar um activismo de que os residentes não se julgavam capazes e a sua luta extravasou as fronteiras da Mouraria.
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Quando um dia se escrever a história dos anos em que Lisboa caiu no goto do mundo e se passar em revista todas as coisas boas e más que aconteceram à cidade nesse período, certamente haverá por lá um parágrafo, ou um capítulo, sobre os moradores de um certo prédio num certo bairro. No número 25 da Rua dos Lagares, a necessidade fez despontar um activismo de que os residentes não se julgavam capazes e a sua luta extravasou as fronteiras da Mouraria.
“Quando recebemos a carta de despejo, a terra tremeu. E até hoje não parou de tremer”, comenta Carla Pinheiro, a mulher que em 2017 se dirigiu à Câmara de Lisboa para pedir ajuda.
Faz agora quatro anos, 16 famílias daquele edifício foram informadas de que os seus contratos de arrendamento não seriam renovados, escancarando os dilemas com que Lisboa se começava a confrontar. Começou aí um caminho que agora conhece o seu epílogo: as últimas quatro famílias que ainda não tinham solução habitacional vão morar para casas municipais.
A confirmação chegou por correio há poucos dias e foi revelada ao PÚBLICO esta semana, num encontro entre a vereadora da Habitação e três das moradoras abrangidas, precisamente as que se tornaram porta-vozes do prédio e ganharam o cognome de “gaulesas”. Carla Pinheiro, Alessandra Esposito e Rosário Conceição, assim como Maria Helena Pinheiro, conseguiram nova morada através do concurso Habitar o Centro Histórico, lançado pela autarquia para situações de despejo iminente.
O momento tem sabor a vitória. “A justiça fez-se. Isto era mais do que justo por aquilo que passámos”, diz Carla Pinheiro. Há quatro anos, quando foram bater à porta da câmara pela primeira vez, esta declarou-se impotente para intervir. Afinal, era um senhorio privado que não queria renovar os contratos aos seus inquilinos – estava no seu direito legal. Mas essa posição inicial viria a alterar-se quando a vereadora da Habitação, Paula Marques, decidiu envolver-se pessoalmente no caso.
A câmara e o senhorio chegaram a acordo, os inquilinos fizeram novos contratos por cinco anos. Entretanto, a lei das rendas foi alterada e quase todas as famílias do prédio passaram a ter os seus arrendamentos protegidos por terem mais de 65 anos. Sobraram quatro. Candidataram-se ao Habitar o Centro Histórico, foram recusadas. Uma condição sine qua non deste concurso é que os candidatos tenham recebido uma carta de despejo ou de fim dos contratos. Por causa do acordo entre o senhorio e a câmara, não tinham.
“Foi por acção da câmara que elas não puderam candidatar-se”, reconhece Paula Marques. Perante isto, o gabinete jurídico da autarquia foi chamado a pronunciar-se. “Considerando que a situação de final do acordo é equiparada a uma ordem de despejo, as candidaturas passaram a procedentes”, resume a vereadora.
E é assim que estas moradoras se vêem agora a contar os dias para se despedirem daquele prédio. A filha de Rosário quer celebrar o 16º aniversário na casa nova, em Agosto. “Se a pandemia nos deixar, mesmo que a gente aqui não esteja, no Santo António vimos aqui fazer a festa da vitória”, proclama a mãe.
Agora que o chão parou de tremer, para usar a expressão de Carla, o momento também é de balanço. Rosário Conceição ainda tem dificuldade em acreditar que “três gatas pingadas” conseguiram convencer a câmara a apoiá-las, ser ouvidas no Parlamento a propósito da Lei de Bases da Habitação e tornarem-se ponto de paragem obrigatória para todas as candidaturas políticas de esquerda: do PS ao BE não houve quem não picasse ali o ponto.
“Tivemos oportunidade de perceber que a nossa situação não era coisa única”, diz Alessandra Esposito. “O que ajuda é uma luta limpa, honesta e sincera. Não é preciso a gente sair fora da lei para que a coisa funcione”, comenta Rosário.
Carla Pinheiro não está com vontade de abandonar a luta. “Agora apanhámos o bichinho, não vamos parar. Tem de haver mais mudanças na lei do arrendamento.” Rosário constata: “A gente já não sabe falar de outra coisa. Antes ainda falávamos da novela, de um filme, dos filhos. Agora vai tudo dar à habitação, vai tudo dar à política.”