Chile glaciar, de Magalhães, de Neruda e de Santiago
O leitor Mário Menezes partilha a sua aventura e deslumbramento por este país sul-americano.
A minha última grande viagem passou pelo fim do mundo. Duas semanas maravilhosas pela Argentina e uma pelo Chile.
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A minha última grande viagem passou pelo fim do mundo. Duas semanas maravilhosas pela Argentina e uma pelo Chile.
A Puerto Natales cheguei de noite, após cinco horas de autocarro desde El Calafate (Argentina) pelo Deserto Patagónico. O Chile é um dos poucos países onde existem fiordes e daqui se parte em cruzeiros à sua descoberta. Também é ponto de partida para visitar os Parques Nacionais da Patagónia, Chilena e Argentina, por via terrestre, onde se situam os enormes bancos de gelo, entre os quais, o Glaciar Argentino de Perito Moreno. Faz parte da região chamada "Magalhães e Antárctica Chilena” porque Fernão de Magalhães, navegador português, cruzou aqueles mares.
Era Verão mas a temperatura não ia além dos 16ºC e à noite baixava dos 5ºC. Períodos de chuva e vento constante também são parte do quadro meteorológico diário.
Pequena cidade portuária na margem do fiorde Última Esperanza. A pé conhecemos praticamente todo o aglomerado de casas coloridas de madeira, com alguns monumentos e estátuas interessantes. Junto ao Monumento ao Vento, fiz amizade com duas turistas russas e uma chilena e terminámos essa tarde num bar brindando “às nossas viagens” com pisco sour, um cocktail tradicional que leva limão, açúcar, pisco (aguardente), clara de ovo e cubos de gelo.
O dia seguinte foi dedicado ao Parque Nacional das Torres del Paine, o mais importante de todos. Local de sonho, cheio de lagos de cor azul intensa, cataratas, riachos e o relevo agreste, onde se destacam os três penhascos de granito chamados Torres del Paine que foram esculpidos pelo avanço e recuo dos glaciares há mais de 12 milhões de anos. Com quase 3000m de altitude, apresentam-se douradas ao sol matinal. A fauna e a flora também marcam presença, podendo observar-se bandos de avestruzes ,condores andinos, flamingos, pica-pau de Magalhães, rebanhos de guanacos (espécie de camelo andino) e, se tivermos sorte, um felino. No entanto, estes animais são “nocturnos”. Esta é uma zona protegida onde a entrada custa 30 dólares e só é possível explorá-la em tours ou alugando um veículo, sendo esta a solução mais económica para quem viaja acompanhado. O Chile não é um país barato!
De regresso a Puerto Natales, uma paragem na Cueva del Milodon. Monumento natural constituído por cavernas habitadas em tempos por milodontes, mamíferos com 200kg de peso e três metros de altura, que ali habitavam há mais de 10.000 anos. O percurso pelos trilhos interiores e a vista desde à saída para o Fiorde Eberhard justificam o pagamento dos 12 dólares.
Punta Arenas, capital e maior cidade da região, foi a última paragem na zona mais austral do mundo. Daqui se parte à descoberta de várias ilhas no Estreito de Magalhães, nomeadamente a ilha Magdalena, onde existe uma colónia de pinguins. A Punta Arenas cheguei noite dentro. O meu voo para Santiago era no dia seguinte ao início da tarde. Um curto passeio matinal pela cidade até ao Cerro de la Cruz, onde se desfruta da vista panorâmica dominada pelo Estreito de Magalhães. Seguiu-se a Plaza Armas, onde se encontra a estátua do navegador português, e depois a marginal, Av. Costanera. Daqui, em frente ao Estreito, me despedi da Patagónia e destes dias de Verão Austral, leia-se invernal.
Três horas de voo até Santiago, vislumbrando a Região dos Lagos. Em seguida, 1h30 de autocarro até Viña del Mar, onde fiquei alojado. Após cruzar meio país, finalmente o Verão dava mostras. Tempo de praia e o oceano Pacífico já ali. Pacífico só mesmo o nome. É perigosíssimo e gelado. Esta é uma das estâncias de praia predilectas dos chilenos. Prédios modernos, hotéis, restaurantes, um famoso casino e a animada vida nocturna, com vários bares e discotecas. Ali podemos saborear o famoso ceviche, um dos ex-líbris da gastronomia peruana. E também da chilena!
O dia seguinte começou por Valparaíso, a 30 minutos de autocarro ou de metropolitano. Cidade portuária, sede do Congresso Nacional, é encantadora, com muitas colinas íngremes cheias de casas coloridas, acessíveis por funiculares. O poeta Pablo Neruda escolheu ali viver e as suas obras descrevem esta terra na perfeição. A tarde foi dedicada à praia de Reñaca, a mais famosa. Pela primeira vez tomei banho no oceano Pacífico. O dia terminou no alto das Dunas de Concón com a encantadora vista para a região litoral de Valparaíso e Viña del Mar, e para o interior, onde se localizam os vinhedos. O Chile é um paraíso vinícola. E de cerveja, com inúmeras variedades e marcas produzidas com lúpulo proveniente da Cordilheira dos Andes.
Para terminar, voltei a Santiago. Capital gigantesca onde vivem cerca de sete milhões de habitantes. Cidade cercada pelas altas montanhas da Cordilheira dos Andes, que a colocam num verdadeiro “poço” onde sofre com a poluição produzida pelos veículos que circulam nas suas ruas e dos incêndios nas florestas circundantes. Quando a sobrevoamos, o smog é bem visível. Contudo, Santiago tem uma localização privilegiada. De um lado as estâncias de esqui das montanhas, a cerca de 40Km, do outro as praias de Viña del Mar.
A primeira paragem foi o Estádio Nacional, casa da selecção chilena de futebol e também do clube Universidade do Chile. Foi palco do Campeonato do Mundo de 1962. O mais importante deste recinto é a sua história ligada ao regime de Pinochet. Ali funcionou um centro de detenção, tortura e sequestro. Uma parte da bancada de um dos topos é vedada e esses lugares não levam público. Um memorial às vítimas que ali sofreram, estando lá escrito “un pueblo sin memoria es un pueblo sin futuro”. A visita é obrigatória mesmo que não sejamos adeptos de futebol.
Seguiu-se o Palácio de La Moneda, sede da Presidência da República. Ali ocorreu a morte do antigo Presidente Salvador Allende, durante o Golpe de Estado de 1973, que permitiu a Pinochet ascender ao poder.
O dia terminou no cimo da Torre Sky Costanera, o edifício mais alto da América do sul, de onde a vista sobre a cidade e sobre as montanhas da Cordilheira dos Andes nos deixa perplexos. A imensidão de uma cidade moderna de estilo americano, ao invés de Buenos Aires, com a sua traça europeia e romântica!
O melhor ficou para o fim: no alto do Cerro San Cristóbal. Santuário dedicado à Virgem da Imaculada Conceição, cuja estátua se encontra no topo abraçando Santiago. O acesso por teleférico permite-nos desfrutar da vista panorâmica, inclusivamente sobre as favelas, à medida que subimos a montanha. O regresso pode ser feito de funicular.
Durante a tarde visitei a Plaza de Armas, o coração da cidade, e o Museu Histórico Nacional, onde podemos descobrir as origens daquele povo e perceber que aquilo a que muitos europeus chamam Descobrimentos, é visto e sentido pelos sul-americanos como invasão e lenocínio.
Antes de embarcar para Montevideo (Uruguai), pude passar pelo Museu da Memória e dos Direitos Humanos e reflectir sobre o sofrimento daquele povo em anos tão recentes e que jamais se apagará. Um povo de “sangue quente” que se revolta e luta pelos seus direitos. Um país em que as revoluções estão bem presentes e a política está em cada canto, seja nos murais de rua ou nas conversas de café.
Apesar de ser curta esta passagem pelo Chile, resumo-a citando a letra do seu hino Nacional: “Puro, Chile, es tu cielo azulado; puras brisas te cruzan también; y tu campo de flores bordado; es la copia feliz del Edén; Majestuosa es la blanca montaña; que te dio por baluarte el Señor; y ese mar que tranquilo te baña; te promete futuro esplendor...”
Mário Menezes (texto e fotos)
Autor de alguns textos em www.amantesdeviagens.com