Tiago Correia: “O Governo não está a causar ruído. Quem está são os cientistas com as escolas”

Há uma “discussão ensurdecedora” sobre desconfinamento, mas, “antes de decidirmos o dia” em que a sociedade reabre, “temos de perceber como o fazer”, diz o especialista em saúde internacional. Quanto mais durar o confinamento, mais os cidadãos vão “desligar-se completamente da mensagem política”.

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Tiago Correia é especialista em Saúde Internacional IHMT

Mais do que colocar uma data no desconfinamento, o importante é decidir os indicadores que vão nortear esse processo. Em entrevista ao PÚBLICO, Tiago Correia, professor de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT), alerta ainda para o facto de o prolongamento do confinamento poder ainda resultar num maior “desligamento” dos portugueses em relação à comunicação política sobre a pandemia. 

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Mais do que colocar uma data no desconfinamento, o importante é decidir os indicadores que vão nortear esse processo. Em entrevista ao PÚBLICO, Tiago Correia, professor de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT), alerta ainda para o facto de o prolongamento do confinamento poder ainda resultar num maior “desligamento” dos portugueses em relação à comunicação política sobre a pandemia. 

Considera que o desconfinamento está a ser devidamente preparado?
A essa pergunta apenas os membros do Governo podem responder. Ou seja, para fazermos um bom desconfinamento há alguns pressupostos que têm de estar acautelados – e eu não sei se estão ou não. Só o Governo o saberá.

Quais são esses pressupostos?
Garantir uma capacidade de testagem muito grande, mas também definir uma política de testagem muito rigorosa. A política de testagem foi revista: todos os contactos de risco são testados, a questão dos testes de antigénio em locais com grande concentração de pessoas. Essa política foi definida, a meu ver bem. A minha dúvida é se temos testes suficientes para responder a um aumento muito significativo de contactos de risco. Este é o primeiro ponto. O segundo: inquéritos epidemiológicos. É importante garantir que há efectivamente pessoas suficientes para os fazer, no máximo 48 horas após um diagnóstico. Mas tem de ser bem feito, um inquérito completo. Aquilo que vemos, sobretudo durante a segunda vaga, é que não só estavam muitos inquéritos para trás, mas os que estavam a ser preenchidos não tinham toda a informação necessária.

Tendo em conta o que diz, considera perigosa esta pressão para desconfinar?
A política de testagem está [acautelada]. O número de testes, não sei se está. Os rastreios epidemiológicos, não sei se está. Ou seja, dos três indicadores, sabemos que um deles está e não sabemos os outros dois. Enquanto não estiverem os três acautelados, penso que não há condições para se desconfinar. Mas há mais uma questão: quais são os princípios do desconfinamento? Ainda não vi uma clareza a respeito disto. Não há fórmula mágica para desconfinar. Os vários países utilizam não só indicadores diferentes como linhas diferentes para decidirem o que fazem. Na sociedade portuguesa há uma mensagem simplificada de que uma coisa é política e outra ciência, como se os técnicos e especialistas pudessem dar essa resposta simples [sobre o desconfinamento].

Tem defendido que as “linhas vermelhas” não deveriam basear-se apenas em dados epidemiológicos, mas também em critérios como a educação, a saúde mental…
Os relatórios políticos do Reino Unido têm os indicadores epidemiológicos – o R(t), a incidência, os óbitos, a ocupação dos cuidados intensivos – e depois têm ainda a evolução mensal do desemprego, do rendimento das famílias, do impacto na saúde mental. Tenta-se quantificar um conjunto diversificado de indicadores que nos permitam perceber o equilíbrio das coisas. A minha crítica é que em Portugal temos quantificado os indicadores epidemiológicos, mas não temos qualquer tipo de quantificação sobre os obstáculos no ensino e aprendizagem: o que as crianças estão a perder mensalmente com o encerramento das escolas; a questão da violência doméstica; uma monitorização mensal sobre a alimentação – há pessoas a passar fome?; há pessoas com desconforto energético?

Mas ao juntar todos esses indicadores vai ter inevitavelmente de dar preferência a alguns…
Mas a questão é essa. O que estou a dizer é que em Portugal não temos conhecimento de outros indicadores e estamos apenas a basear-nos nestes [nos epidemiológicos]. Os outros ficam com base apenas numa percepção sobre o que se passa.

Temos visto o Presidente da República a seguir as “linhas vermelhas” traçadas pelos epidemiologistas e o Governo a adiar discussões sobre os números a partir dos quais podemos desconfinar. Na sua opinião, qual é a abordagem que faz mais sentido?
O Presidente não está a usar a visão dos epidemiologistas, utilizou a de um epidemiologista. Vou reforçar: não existe uma linha para desconfinar. Aquilo que os políticos fizeram foi usar isso com uma linha rígida, mas nem sequer faz sentido. Por que é que são 200 internamentos em cuidados intensivos se 85% da ocupação são cerca de 250 camas? Por que não são 180 ou 210? Não há uma regra que essa opinião seja mais válida do que as outras.

Destacaria algum país como exemplo?
Volto a dizer o Reino Unido. Tem um conjunto mais diverso de indicadores, inclusive de saúde mental, e faz essa monitorização. Claro que a pandemia tem de estar controlada, sou o primeiro a dizer isso. Mas não sei o que custa, nos processos de ensino e aprendizagem, tentarmos chegar aos 200 doentes em cuidados intensivos. Não sei se não haverá um ponto de equilíbrio – por exemplo, com 400 internamentos em cuidados intensivos – que pudesse ser um compromisso, um “mal menor”, entre os internamentos e as escolas estarem fechadas.

Mas acha possível reabrir as escolas sem colocar em causa a descida dos números?
Depende. Temos testes, política de testagem e equipas de rastreio? Aquilo que temos de saber é que, a partir do momento em que há um caso confirmado, todos esses contactos estão identificados e são testados. É isto que está em causa.

Nas suas intervenções públicas, referiu por várias vezes a importância de reduzir “o ruído” na comunicação sobre a pandemia. Considera que o Governo o tem conseguido fazer?
Neste momento, acho que o Governo não está a causar ruído. Quem o está a fazer são os próprios cientistas com esta história das escolas. Não estão a contribuir para a serenidade que era necessária.

Em que sentido?
Estamos a deixar a categoria de pior país do mundo em termos da pandemia. O sistema [de saúde] ainda está a recuperar, os nossos profissionais de saúde também. Isto aconteceu há 15 dias, três semanas. Já estamos com uma discussão ensurdecedora sobre o desconfinamento. Essa discussão tem de acontecer, mas não pode acontecer assim: a consequência é termos a opinião pública completamente polarizada: uns vão dizer que o Governo está certo, outros que são os outros. Entretanto, temos os partidos da oposição a fazerem as utilizações que bem entenderem de tudo isto. Quando precisarmos de tomar decisões – quando, quem, em que condições desconfinar – o campo já está completamente minado de opiniões consolidadas e muitas pessoas a desconsiderar o que for decidido.

Como se evita essa polarização?
Em primeiro lugar, o Governo deveria ser aconselhado por um corpo de cientistas muito mais abrangente. E essas posições devem ser muito claras. Depois, as pessoas que intervêm no espaço público têm de ter percepção das consequências da sua mensagem. Quando se faz uma carta aberta para o Presidente da República, primeiro-ministro ou Governo, tem de se perceber que quem lê a carta não são só os destinatários. Gerou-se um debate na sociedade portuguesa desde há dois dias que me parece muito prejudicial para o processo de desconfinamento. Não está em causa a necessidade de planear, mas a carta não diz nada sobre o planeamento. Os ciclos de ensino vão abrir em todo o território ou vamos usar mapas epidemiológicos?

Uma abertura em função da incidência?
Essa seria uma discussão interessante a fazer-se, em vez de estarmos a discutir se é no dia 1 de Março ou 15 de Abril. A discussão pertinente seria os princípios a guiar o desconfinamento. O território nacional vai assumir-se como um todo ou vamos definir as especificidades da pandemia? Abertura independentemente do risco epidemiológico: sim ou não? E se não, em função de que indicadores? Antes de decidirmos o dia do desconfinamento, temos de perceber como o fazer. Defendo o princípio da proporcionalidade e gradualidade, não acho que o território deva ser tratado da mesma forma. O outro pressuposto é que se assume que o comportamento das pessoas se vai manter constante ao estarmos confinados mês e meio ou três meses.

Quanto mais tempo as pessoas ficarem em confinamento, “pior” será o seu comportamento depois?
Quanto mais tempo estiverem em confinamento, mais vão incumprir e de uma forma encapotada. Vão começar a desligar-se completamente da mensagem política e dos decisores. Vão procurar retomar a sua normalidade. Isto não é científico, é empírico. Basta ver o que foi feito no primeiro confinamento: quando desconfinámos no início de Maio, os epidemiologistas no Infarmed diziam que o R(t) [o índice de contágio] já estava perto de 1. Estavam com algum receio, mas o primeiro-ministro percebeu que desde a Páscoa as pessoas já se tinham desligado do confinamento. E esse argumento foi novamente utilizado no Natal. Os decisores têm de perceber que quanto mais tempo mantiverem o confinamento, menos as pessoas vão cumprir.

Trava-se uma luta contra o tempo?
Sim, é uma luta contra o tempo. Por isso, é que a tónica desta intervenção é a de que não podemos chegar aos indicadores epidemiológicos óptimos, temos de tentar fazer um certo balanço.

De acordo com os dados do boletim semanal de vacinação, Portugal já deu as duas doses da vacina a 250 mil pessoas. Acha que o plano tem cumprido as expectativas?
É uma pergunta difícil, porque o plano de vacinação parte de um conjunto de pressupostos que não se estão a verificar: a entrega das vacinas. Em função do que tem sido essa entrega, está a cumprir parcialmente as expectativas. Penso que está genericamente a correr bem, faço uma leitura positiva, mas o plano de vacinação também foi sujeito a muita pressão. Definimos as prioridades e depois, mesmo perante um contexto de escassez de vacinas, aumentou-se ainda mais o grupo dos prioritários – as pessoas com 80 ou mais anos. É aqui que faço a leitura negativa. No contexto de escassez e vacinas, trazemos mais pessoas para o primeiro grupo para responder a este conjunto de pressões. Agora diz-me: ‘Mas não são as pessoas com 80 anos as mais vulneráveis?’. Os dados que temos sobre a ocupação dos cuidados intensivos e mortalidade dizem-nos que está mais associada às comorbilidades graves do que à idade.

A falta de vacinas comprometerá a meta europeia de vacinar 70% dos adultos até ao final do Verão?
Penso que até lá, se percebemos que as farmacêuticas não cumprem, podem existir alternativas. Eventualmente quebrar a patente de algumas das vacinas e produzi-las com legítima justificação. É algo que está previsto na lei internacional em caso de uma necessidade extrema. Ou adoptar vacinas que ainda não estão a ser usadas na Europa: nomeadamente alguma das chinesas ou então a russa [Sputnik V].

António Guterres alertou para o facto de os países mais pobres receberem apenas uma fracção das vacinas. Com a retoma das viagens, isto pode comprometer a imunização mundial?
Completamente! Coloco como hipótese – sublinho, como hipótese, não estou a antever nada – que, se este ritmo desigual [da vacinação] se mantiver, possam existir novas vagas após o Verão. Temos a população dos países desenvolvidos relativamente imunizada, mas com a circulação mundial de pessoas podem existir contágios mesmo com a população imunizada, com a possibilidade de haver um conjunto de variantes a que as vacinas não dão resposta. Para isto acontecer, significa que as variantes que vão surgir fujam à eficácia das vacinas – e não é garantido que isso aconteça. Estou só a dizer que, na pior das hipóteses, isto é possível que aconteça.