Ngozi Okonjo-Iweala defendeu o seu passaporte africano
Ngozi Okonjo-Iweala deixa a sua marca por onde passa e tenho a certeza de que não será apenas um símbolo na OMC. A instituição, que desde a sua criação, em 1995, nunca esteve tão fragilizada, desligada da sua função principal, a resolução de litígios comerciais, precisa mais do que nunca de alguém como ela.
Vi Ngozi Okonjo-Iweala pela última vez em setembro de 2018, em Marraquexe, ela e Wole Soyinka, Prémio Nobel de Literatura e também da Nigéria, foram os dois convidados ilustres de um evento dedicado às mulheres líderes africanas do qual fui um dos promotores. Já sabia que ela era brilhante, que tinha sido directora-geral do Banco Mundial, ministra das Finanças duas vezes e ministra dos Negócios Estrangeiros na Nigéria. Também sabia que era um símbolo para o empoderamento das mulheres no mundo, mas acima de tudo sabia que ela não se contentava em ser apenas um símbolo: ela abala o poder deste mundo tão masculino e sem coração. Portanto, não ficará satisfeita em ser simplesmente a primeira mulher e a primeira pessoa africana a dirigir a OMC.
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Vi Ngozi Okonjo-Iweala pela última vez em setembro de 2018, em Marraquexe, ela e Wole Soyinka, Prémio Nobel de Literatura e também da Nigéria, foram os dois convidados ilustres de um evento dedicado às mulheres líderes africanas do qual fui um dos promotores. Já sabia que ela era brilhante, que tinha sido directora-geral do Banco Mundial, ministra das Finanças duas vezes e ministra dos Negócios Estrangeiros na Nigéria. Também sabia que era um símbolo para o empoderamento das mulheres no mundo, mas acima de tudo sabia que ela não se contentava em ser apenas um símbolo: ela abala o poder deste mundo tão masculino e sem coração. Portanto, não ficará satisfeita em ser simplesmente a primeira mulher e a primeira pessoa africana a dirigir a OMC.
E nesse dia 27 de setembro em Marraquexe, com ela, descobri a verdadeira definição da palavra determinação. De manhã cedo, recebi o telefonema de Aude de Thuin, a fundadora do projecto Women In Africa, que imediatamente me fez compreender, através da sua respiração profunda perceptível ao telefone e do tom da sua voz irritada quando disse "Ricardo!", que algo sério estava a acontecer. Disse-me que estava a ir para o aeroporto de Marraquexe para resolver um problema muito grave. "Ngozi está detida no aeroporto!", esclareceu. "O quê? E porque?”, perguntei surpreso. “Explicarei mais tarde, mas o caso já está ao mais alto nível do país”, acrescentou. "Vou contigo!", sugeri. “Já estou a caminho, até logo!", respondeu e desligou. E Ngozi Okonjo-Iweala havia sido convidada da maneira mais oficial para esse evento que estava a ocorrer sob o Alto Patrocínio de Sua Majestade o Rei Mohammed VI, o Rei de Marrocos. Então era mesmo um grande incidente diplomático.
Procurei saber de imediato sobre o incidente, mas foi a própria Ngozi Okonjo-Iweala quem deu todos os pormenores, mais tarde, perante as mulheres dos 54 países africanos representados, incluindo Angola, cujas dinâmicas representantes eu queria apresentar oficialmente à Aude de Thuin naquela manhã. E o clímax do evento foi, de qualquer forma, a chegada de Ngozi Okonjo-Iweala na sala de conferência. Foi recebida com uma ovação de pé como uma estrela do rock e iluminou toda a sala com a sua aura de dignidade e inteligência. Sempre começa os seus discursos com uma piada benevolente e subtil e aquele dia não foi excepção. No pódio, quando subiu, estava sentada, de frente para o público, numa cadeira de onde irradiava toda a sua graça e segurava o microfone na mão direita. Hafsat Abiola, directora do evento e moderadora da conversa com ela, estava sentada na outra cadeira também de frente para o público. E foi aí que ficámos a saber dos detalhes das desventuras que a grande senhora vivenciou no aeroporto para defender a soberania da África: “Bem, disse-lhes que se não me deixassem sair com esse passaporte, eu dormiria lá”, contou, enquanto agitava no ar o passaporte, com um humor que contrastava com a gravidade da situação. "Se decidimos criar esse passaporte, é para que possamos usá-lo.”
Na verdade, Ngozi Okonjo-Iweala tinha vindo para Marrocos, onde havia chegado na noite anterior, com o novo passaporte da União Africana, que tinha sido lançado em 17 de julho de 2016, sob a presidência de Paul Kagame e Idriss Déby, em substituição dos passaportes nacionais, para dar aos cidadãos dos 55 Estados-membros da União Africana a liberdade de viajar sem visto. É verdade que a situação foi no mínimo embaraçosa quando sabemos que Marrocos foi reintegrado na União Africana em 30 de janeiro de 2017! E o que fez Ngozi Okonjo-Iweala, que tinha toda a intenção de usar a ocasião para transmitir uma mensagem forte, face a essa situação incoerente? Ela decidiu esperar até que o seu documento de viagem africano fosse reconhecido, mesmo que isso significasse passar a noite no aeroporto. E passou mesmo a noite sentada num banco do aeroporto de Marraquexe! No entanto, essa senhora conhece e fala directamente com praticamente todos os chefes de Estado e de Governo do mundo. Mas decidiu defender o bom senso e recusou-se a usar a sua influência para sair do aeroporto sem resolver o problema. E foi a própria polícia, perante a teimosia da orgulhosa africana, que naquela manhã avisou os organizadores do evento e as autoridades do país.
Eis aqui uma africana sensata, que deve inspirar todos os africanos na sua relação com a sua africanidade e no amor que têm pelo seu continente. Se alguns governantes angolanos ainda preferem os passaportes portugueses quando chegam ao aeroporto Humberto Delgado, Ngozi Okonjo-Iweala, que recusa a obliteração e viver no universalismo alheio, é um bom exemplo para eles. E notemos também que a principal atracção do evento foram os dois nigerianos proeminentes. Como angolano, espero que Angola crie o equivalente algum dia, pois agora decidimos trabalhar seriamente para organizar o nosso país e sermos nós próprios a fim de alcançarmos altos e verdadeiros níveis.
Ngozi Okonjo-Iweala deixa a sua marca por onde passa e tenho a certeza de que não será apenas um símbolo na OMC. A instituição, que desde a sua criação, em 1995, nunca esteve tão fragilizada, desligada da sua função principal, a resolução de litígios comerciais, precisa mais do que nunca de alguém como ela, que saiba encontrar compromissos e que possa dar um novo impulso ao multilateralismo para frear a tendência das grandes potências de concluir acordos de livre comércio bilaterais ou regionais. Não se enganaram ao recrutar Ngozi Okonjo-Iweala, embora a África, seu continente, não tenha aproveitado a globalização do comércio nas últimas décadas. A participação do continente no comércio mundial passou de 4,8% no início dos anos 1970 para 2,5% hoje.
No palco, em Marraquexe, Hafsat Abiola perguntou a Ngozi Okonjo-Iweala porque é que ela não queria candidatar-se à presidência da Nigéria. “Now I want to enjoy life! Let me enjoy my live!", respondeu com o seu lindo sotaque nigeriano e um sorriso luminoso. “Mal vi os meus filhos crescerem, quero ver os meus netos crescerem”, acrescentou, no ruído compreensível e desaprovador da plateia. Pois que pena deixar a África nas mãos dos homens que até agora a destroem! E a sua matriz de poder, sendo feminina, não seriam as mulheres que poderiam salvar a África? Portanto, mal posso esperar que Ngozi Okonjo-Iweala mude de ideia. no fim da conversa, esgueiramo-nos através da multidão para a cumprimentar e numa rápida troca ela disse: “I know the First Lady of Angola, Ana!". Parecia de facto apreciar a primeira-dama de Angola, Ana Dias Lourenço, a quem tratava pelo primeiro nome e a quem mandou cumprimentos calorosos e saudosos. E consegui duas cópias do seu livro, Fighting Corruption is Dangerous: The Story Behind the Headlines (MIT Press, 2018), que acabava de ser lançado. Com Ngozi Okonjo-Iweala, essa mulher que tem uma postura de cabeça majestosa, que usa um lendário turbante para a sua identidade, que tem um olhar repleto de consciência e generosidade, uma africanidade assumida e orgulhosa e uma simplicidade reservada aos gigantes, é uma certa África que se afirma e avança.
Ricardo Vita, Co-fundador e vice-presidente do instituto francês République et Diversité