Tribunal alemão condena ex-agente dos serviços secretos sírios por crimes contra a humanidade

O veredicto de Eyad al-Gharib é histórico por garantir o primeiro registo legal dos crimes cometidos pelo regime de Bashar al-Assad na Síria.

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Eyad al-Gharib na chegada ao tribunal de Koblenz para conhecer o veredicto Reuters

Eyad al-Gharib, um ex-agente dos serviços secretos sírios de 44 anos, acaba de tornar-se na primeira pessoa ligada ao regime de Bashar al-Assad condenada por crimes contra a humanidade. Durante o julgamento, no tribunal de Koblenz, muitos sírios testemunharam sobre a repressão brutal com que o regime decidiu responder aos protestos pacíficos que começaram há quase dez anos.

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Eyad al-Gharib, um ex-agente dos serviços secretos sírios de 44 anos, acaba de tornar-se na primeira pessoa ligada ao regime de Bashar al-Assad condenada por crimes contra a humanidade. Durante o julgamento, no tribunal de Koblenz, muitos sírios testemunharam sobre a repressão brutal com que o regime decidiu responder aos protestos pacíficos que começaram há quase dez anos.

Chegado à Alemanha foi o próprio Gharib que começou por contar às autoridades o que tinha feito quando pediu asilo político, o que haveria de levar à sua prisão, em Fevereiro de 2019. Tinha desertado em 2012 e deixado a Síria no ano seguinte.

Um mero subordinado, foi acusado de ter participado na prisão de pelo menos 30 manifestantes e de os ter levado para o centro de detenção Al-Khatib, no centro de Damasco, depois de um protesto em Duma (a nordeste da capital), no Outono de 2011 – os detidos foram depois torturados e assassinados. Gharib foi considerado cúmplice de crimes contra a humanidade e condenado a quatro anos e seis meses de prisão.

O que acontecia a quem era preso em Al-Khatib, prisão conhecida como “Ramo 251”, gerida pelos serviços secretos e destinada a presos políticos, não é segredo. E mais de uma dezena de homens e mulheres testemunharam sobre os abusos que todos sofreram no “Ramo 251” – abusos sexuais e violações, “choques eléctricos”, espancamentos com “murros, arames e chicotes” ou “privação de sono” foram alguns dos enumerados pelos procuradores.

Em tribunal, algumas destas pessoas surgiram com cabeleiras ou foram ouvidas com o rosto tapado, com medo de represálias contra familiares que ainda se encontram na Síria. Na base da acusação estão os relatos de 24 testemunhas. As provas incluíram ainda fotografias divulgadas pelo desertor conhecido como “César” – um fotógrafo da polícia que conseguiu tirar do país milhares de imagens de cadáveres de vítimas de tortura.

Gharib trabalhava para a mais poderosa agência de serviços secretos da Síria, o Directório Geral de Informação (GID, na sigla em inglês), e respondia a Anwar Raslan, um coronel que começou por ser julgado a seu lado em Koblenz. Os juízes acabaram por decidir separar os processos e o julgamento do ex-coronel Raslan, um dos responsáveis pela prisão, deve terminar em Outubro. Raslan, de 58 anos, é acusado directamente de crimes contra a humanidade, incluindo ter supervisionado o assassínio de 58 pessoas e a tortura de quatro mil.

“Este julgamento representa o primeiro passo em direcção à justiça que as vítimas sírias realmente sentem”, disse à BBC Anwar al-Bunni, um advogado de direitos humanos que vive exilado na Alemanha. Bunni foi preso pelo próprio Raslan em Damasco e anos depois cruzou-se com ele numa loja de Berlim, tendo ajudado os procuradores na preparação do caso. “O julgamento centra-se em dois acusados… mas o alvo é a máquina infernal de tortura e assassínio” do regime, afirma.

“A decisão de quarta-feira vai entrar nos livros de História”, diz Mark Somos, do Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Direito Internacional, ouvido também pela emissora pública britânica. “As fotos de César e outras provas da horrenda tortura em grande escala do Estado foram discutidos publicamente, e o registo legal continuara a servir numa série de casos futuros”, sublinha.

Estes julgamentos são possíveis por causa do princípio da jurisdição universal, em vigor desde 2002 na Alemanha para crimes contra a humanidade, o que permite que ali sejam julgados crimes que tenham sido cometidos noutros países. Numa situação como o conflito sírio, onde os vetos da Rússia e da China têm bloqueado tentativas de julgar os crimes do regime no Tribunal Penal Internacional, este é o único caminho – face à paralisia do sistema internacional de justiça, e animados por este caso, organizações não-governamentais e sírios refugiados na Alemanha, mas também em França e na Suécia, estão a tentar levar outros responsáveis a tribunal.