A vexata quaestio das alterações à lei eleitoral autárquica
Nos últimos dias discutiram-se muito as alterações que a Assembleia da República (AR) produziu à lei eleitoral autárquica. Impõe-se, no entanto, desmontar os argumentos que visam o abandalhamento da lei eleitoral.
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Nos últimos dias discutiram-se muito as alterações que a Assembleia da República (AR) produziu à lei eleitoral autárquica. Impõe-se, no entanto, desmontar os argumentos que visam o abandalhamento da lei eleitoral.
1. Primeiro, o que mudou? O Parlamento, além de ter introduzido uma inelegibilidade que visou evitar os negócios dos candidatos com a própria autarquia à qual se candidatam, pretendeu ainda esclarecer também várias dúvidas sobre os Grupos de Cidadãos Eleitores (GCE - ditos independentes). A lei estabelecia e não foi alterado em 2020 que os proponentes de um GCE têm de ser recenseados na autarquia à qual se candidatam. Os candidatos não têm de ser recenseados nessa autarquia, podem até residir noutro ponto do país, mas os proponentes têm de ser aí residentes. Porque é que é assim? Porque com a Revisão Constitucional de 1997, quando se permitiu a candidatura de GCE, o legislador partiu da compreensão de que podem existir interesses locais que devem poder ser promovidos pela comunidade que os reclama, já que esses interesses locais podem não ser compatíveis com os interesses coletivos gerais. É assim que surgem os GCE, mas com uma especial ligação entre as candidaturas e a comunidade local. A lei não permitia e não permite que possam existir camionetas de proponentes de uma freguesia X a invadir os órgãos autárquicos da freguesia Y, independentemente do local onde se situem. O pressuposto do recenseamento dos proponentes leva, então, a que os GCE, mesmo que constituídos para diferentes autarquias por primos, tios, irmãos, amigos são necessariamente diferentes se o local de recenseamento é diferente. E se são diferentes não se podem chamar da mesma forma — a tal denominação, sigla e símbolo que aparecem no boletim de voto. Salvo no caso dos órgãos do município, já que aí os proponentes podem ser os mesmos (recenseados no concelho).
2. A Constituição da República Portuguesa (CRP) proíbe desde há muito a existência de partidos regionais (ou locais, por maioria de razão), nos termos do artigo 51.º, o que conduz à impossibilidade de diferentes GCE se poderem associar ou coligar, pois tal constituiria, com fraude à lei, ao reconhecimento de um partido local.
3. A distinção de GCE entre diferentes autarquias mostra-se ainda mais relevante por uma questão de verdade eleitoral. Se um candidato a uma câmara, que não o é a uma freguesia X ou Y, coloca o seu nome no boletim de voto dessas freguesias, está a dizer que é candidato às mesmas, o que não é verdade. Estabeleceu-se na lei, então, clarificando o entendimento da CNE de 2017, que a existir um nome de um candidato de um GCE, então esse nome tem de ser o do primeiro candidato da lista apresentada pelo GCE a essa autarquia específica. E uma freguesia é uma autarquia diferente das outras e diferente da autarquia município. Se assim não for, ocorre uma fraude eleitoral. Note-se que os partidos políticos, ao contrário dos GCE, não podem fazer inscrever no boletim nomes de pessoas.
4. Rui Moreira veio dizer que tem de apresentar 7000 assinaturas para se candidatar à Câmara Municipal e que as assinaturas dos proponentes têm de ser reconhecidas pelo notário. É tudo mentira! O artigo 19.º da lei diz que no Porto e em Lisboa, para os órgãos dos municípios, são no máximo 4000 (nas freguesias são bem menos) e quanto ao notário, o n.º 10 do art. 23.º da lei eleitoral já proibia esse reconhecimento e nada foi alterado. Um facto notável é que Rui Moreira se candidatou em 2013 e 2017 ao Porto com as regras sobre assinaturas exatamente iguais às que hoje vigoram.
5. O Parlamento em 2020 alterou as regras de recurso jurisdicional sobre denominações, siglas e símbolos de GCE, permitindo o recurso para o Tribunal Constitucional, pois antes não era admitido e os tribunais de comarca decidiam cada um diferentemente do outro. Um sistema eleitoral credível deve promover a certeza sobre a interpretação da lei, trazendo segurança jurídica.
6. O processo legislativo de 2020 foi longo, de março a julho, e contou com os pareceres dos Conselhos Superiores da Magistratura e Ministério Público, da CNE, da Anafre e ANMP e ninguém afirmou existirem inconstitucionalidades, bem pelo contrário. Num dos casos até se alertou para o favorecimento dos GCE na questão de poderem usar o nome de um candidato no boletim, ao contrário dos partidos.
7. Resta saber o porquê do histerismo? Em 2017, ano de eleições, para sua conveniência, Rui Moreira exigiu e intimou o Parlamento a mudar a lei eleitoral, naquilo que ficou conhecido como a Lei Rui Moreira. Agora está a fazer o mesmo, para promover o abandalhamento das regras e com isso obter um favorecimento e ao mesmo virar as pessoas contra os partidos políticos.
8. Sobre a decisão da provedora de Justiça em recorrer ao Tribunal Constitucional (TC) dir-se-á que é legítima, mas quem decide é o tribunal. A fundamentação aparenta não compreender o que é um GCE à luz da revisão constitucional de 1997, o que se lamenta. O Parlamento continua, porém, a ser autónomo em relação às iniciativas da provedora.