A memória histórica como veneno
Portugal fez-se como projecto identitário à custa da ilusão e de dogmas que a verdade histórica demoliu. Lê-lo e criticá-lo é indispensável: destruir o seu imaginário é uma quimera. Uma parte dos portugueses nunca o aceitaria.
A intensidade com que o país repete as discussões em torno da sua memória histórica é sintoma de uma sociedade doente. O conflito áspero sobre as heranças da Guerra Colonial ou dos Descobrimentos expõe uma ferida a caminho da infecção. O radicalismo alimenta discussões que expõem ódios profundos em favor dos extremos do espectro político. E nada faz prever que a situação melhore. Em causa está uma exigência impossível: que, num passe de mágica operado pela ideologia, o país renegue alguns dos fundamentos mais profundos da sua identidade. Não se recomenda silêncio sobre o problema: apenas prudência. Se o nacionalismo é um vírus fratricida, o historicismo radical dos movimentos anti-racistas também o é.
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A intensidade com que o país repete as discussões em torno da sua memória histórica é sintoma de uma sociedade doente. O conflito áspero sobre as heranças da Guerra Colonial ou dos Descobrimentos expõe uma ferida a caminho da infecção. O radicalismo alimenta discussões que expõem ódios profundos em favor dos extremos do espectro político. E nada faz prever que a situação melhore. Em causa está uma exigência impossível: que, num passe de mágica operado pela ideologia, o país renegue alguns dos fundamentos mais profundos da sua identidade. Não se recomenda silêncio sobre o problema: apenas prudência. Se o nacionalismo é um vírus fratricida, o historicismo radical dos movimentos anti-racistas também o é.
Entrámos num conflito no qual o diálogo e compromisso parecem impossíveis. Numa oposição cada vez mais extremada entre conceitos de uma direita fóssil e uma esquerda “antifa” absolutista e autoritária, o país esquece até os consensos que a democracia produziu a propósito do passado colonial. A brutalidade dos sistemas de exploração de outros povos, a escravatura ou a persistência de uma Guerra Colonial muito para lá da vaga da autodeterminação do pós-II Guerra passaram a ser aceites no consciente colectivo. A Expansão perdeu a sua face idílica e glorificadora. A exaltação do império colonial que mobilizou o país nos tempos do Ultimato, na Primeira República ou no Estado Novo é passado. O Portugal europeu expurgou os principais resquícios do salazarismo.
Os radicais de uma certa esquerda querem ir mais longe e, na sua exigência, estão a alimentar os radicais de direita que querem andar para trás. Dos dois lados há um instinto de imposição das suas verdades aos outros. Ambos abdicam de encarar a História na sua complexidade. Uns e outros retroalimentam-se com o veneno da intolerância. Há até quem não se envergonhe por assinar uma petição em favor da deportação de um cidadão português, por incendiário que seja nas suas posições. A História da colonização foi o que foi. Ver o seu lado sinistro, sem contexto civilizacional, como se fosse uma deliberação consciente de um Estado moderno como a que levou ao Holocausto, é um erro. Vê-la como o testemunho de um povo de heróis, um absurdo. Tem de haver uma zona de conforto para todas as posições. A liberdade e a responsabilidade da democracia.
Portugal fez-se como projecto identitário à custa da ilusão e de dogmas que a verdade histórica demoliu. Lê-lo e criticá-lo é indispensável: destruir o seu imaginário é uma quimera. Uma parte dos portugueses nunca o aceitaria. Como dizia Eduardo Lourenço, o passado não se repara com a criação de um metafórico tribunal da inquisição para “pôr na pira a história deste pequeno país”.