Soares, bitcoins, Pinto Luz e a Irlanda — está tudo ligado
Fico na dúvida: as pessoas escrevem mentiras no espaço público porque se enganam ou porque querem “trazer humor” ao debate? Uma terceira hipótese: talvez seja outra coisa.
O plano era fechar hoje a “saga irlandesa” com uma breve história do uso da Bíblia — cá e lá —, nos últimos 300 anos. Chateei meio Portugal e meia Irlanda por causa disso. Mas tropecei numa notícia falsa sobre bitcoins e adiei a Bíblia para o próximo sábado.
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O plano era fechar hoje a “saga irlandesa” com uma breve história do uso da Bíblia — cá e lá —, nos últimos 300 anos. Chateei meio Portugal e meia Irlanda por causa disso. Mas tropecei numa notícia falsa sobre bitcoins e adiei a Bíblia para o próximo sábado.
No meio dos absurdos que os fãs do Chega dizem na Internet — da suposta “república das bananas” ao suposto “apocalipse pandémico” — vi uma fotografia de João Soares, ex-ministro da Cultura do PS, no cenário do programa de Ricardo Araújo Pereira. O título do post era “João Soares fala finalmente”. Fala de quê?
Pumba. Caí na armadilha. Cliquei e entrei no Eco, um jornal económico sério onde vou com frequência. Tudo normal: a barra verde em cima, o logótipo no meio, a assinatura da jornalista Mariana Espírito Santo, o dia do mês. Mas o título era estranho: “O mais recente investimento de João Soares preocupou especialistas e fez tremer grandes bancos.” Os bancos tremeram por causa de João Soares? E a entrada era ainda mais esquisita: “Soares relata novos investimentos secretos que enriquecem centenas de pessoas na Portugal.” O que se passa?
Só no lead confirmei que estava a ler um texto escrito por um robô: “O João Soares do historiador, economista, empresário e autor português contou como ganha realmente o seu dinheiro.” Ninguém escreve assim.
O texto inventado continua: “João Soares apareceu no programa Isto é Gozar com Quem Trabalha e anunciou uma nova ‘lacuna na lei do capital’ que diz poder transformar qualquer pessoa num milionário dentro de 3 a 4 meses” e “depois de a entrevista ter terminado, o Banco Central português telefonou para parar a entrevista — mas era demasiado tarde”. Se eu caí que nem uma patinha, imagine quem não lê jornais e fontes credíveis todos os dias — ou seja, a maioria dos portugueses. E imagine os programas de inteligência artificial daqui dez anos. Hoje, com o deep fake, já não distinguimos se naquele famoso vídeo era mesmo Barack Obama a falar e num inquérito a testar a sofisticação da inteligência artificial, os leitores do New York Times responderam — erradamente — que uma notícia sobre política internacional era genuína quando, na verdade, era feita por um computador.
O alçapão onde caí fez-me lembrar o vídeo que o vice-presidente da Câmara Municipal de Cascais, Miguel Pinto Luz, fez no ano passado a mostrar uma falsa reportagem da SIC que o dava como tendo passado à segunda volta nas eleições directas para a liderança do PSD. É verdade que a seguir, Pinto Luz diz que “esta é naturalmente uma reportagem fictícia”. Mas Pinto Luz é um político eleito e desempenha um cargo público, não é um miúdo a brincar no TikTok. Para mais, só revela a mentira aos 37 segundos — quando o espectador já viu 27% do vídeo e, muito possivelmente, se foi embora. Quando lhe perguntaram o que era aquilo, respondeu que quis “trazer algum humor” ao debate, pois “a política está muito cinzenta”. Em nome de uma campanha colorida, Pinto Luz pôs a ética no armário.
O alçapão das bitcoins também me fez pensar nas ideias falsas que alguns leitores aqui têm escrito sobre a Irlanda. Nada contra a propaganda e a defesa feroz de ideias. Mas inventar é batota. Um leitor aguçou a minha curiosidade e fui ver como estava o sistema nacional de saúde da Irlanda. Tinha visto a esperança de vida (82,3 anos na Irlanda e 81,5 em Portugal) e a mortalidade infantil (2,9 em cada mil na Irlanda e 3,3 em Portugal — sendo a taxa portuguesa igual à Suíça e mais baixa do que a do Reino Unido ou Holanda). Tinha lido comentários de leitores a dizerem que o acesso à saúde na Irlanda é fabuloso e outros leitores a dizerem que vivem na Irlanda e que não é bem assim. Até que um leitor escreveu — e outros repetiram — esta frase: “A Irlanda tem o tempo de espera para tratamentos de saúde mais baixo da Europa.” Tão concreta que nem me ocorreu que pudesse ser falso.
Mas tudo indica que é. Se não é, não encontro a informação. Os relatórios europeus, os observatórios de saúde e os media irlandeses sérios contam outra história. Há 830 mil doentes nas listas de espera dos hospitais por causa da covid-19; antes da pandemia, em 2018, havia um milhão de pessoas em listas de espera para vários tratamentos médicos, segundo disse o próprio Fianna Fáil, o histórico partido conservador e democrata-cristão da Irlanda.
Em 2018, o Euro Health Consumer Index (EHCI), publicado por um think tank sueco, pôs Portugal em 13.º lugar e a Irlanda em 22.º. “A Irlanda caiu [dois lugares] por um motivo: a Irlanda está sozinha na última posição [no critério] Acessibilidade, com organizações de doentes a darem um feedback muito pessimista. Infelizmente, isso foi confirmado pelo HSE [Health Service Executive] e pelo Ministério da Saúde irlandeses quando, após o relatório do EHCI de 2015, disseram que o programa para reduzir os tempos de espera dos cuidados de saúde na Irlanda visa a uma meta de não mais de 18 meses (!) de espera por uma consulta com um especialista.”
Fico na dúvida: as pessoas dizem mentiras porque se enganam ou porque querem “trazer algum humor” ao debate?