Raspadinha do património cultural – mal menor ou oferta desnecessária?
Segundo dados publicados em 2020, Portugal será o pais da Europa onde se gasta mais dinheiro em raspadinhas per capita, correspondendo esse valor a mais do dobro da média europeia. A introdução de mais oferta no sector não ajudará certamente a diminuir a tendência.
A indústria dos jogos de fortuna ou azar existente em Portugal oferece hoje um vasto leque de produtos, formas e modelos de jogos ao seu público-alvo. Desde a legalização da actividade no país que o legislador português soube adaptar-se tanto às tendências como às preferências dos consumidores e foi permitindo que a oferta de produtos de jogo fosse sendo alargada em quantidade e variedade.
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A indústria dos jogos de fortuna ou azar existente em Portugal oferece hoje um vasto leque de produtos, formas e modelos de jogos ao seu público-alvo. Desde a legalização da actividade no país que o legislador português soube adaptar-se tanto às tendências como às preferências dos consumidores e foi permitindo que a oferta de produtos de jogo fosse sendo alargada em quantidade e variedade.
A mais recente aprovação/criação da tutela é a raspadinha do património, que mais não é do que um novo jogo de lotaria instantânea lançado pelo Governo português em parceria com a entidade que detém o monopólio da exploração deste tipo de jogo de fortuna ou azar, na sua vertente territorial – a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML).
No que respeita ao modelo, a nova raspadinha, cujo nome oficial será “Do Património Cultural”, não apresenta nada de muito novo. Será, ao que parece, uma lotaria instantânea igual a todas as outras que se podem encontrar em muitos cafés, papelarias, tabacarias e demais “lugares de estilo” do nosso país.
A inovação do conceito prende-se com a selecção da entidade destinatária e/ou beneficiária das receitas geradas pela exploração desta lotaria que, in casu, é o Fundo de Salvaguarda do Património Cultural (FSPC). Relativamente à maquia amealhada, destinar-se-á a suportar as despesas com intervenção da salvaguarda e valorização do património classificado ou em vias de classificação, segundo as prioridades definidas pelo Governo português para cada ano.
Em termos de receitas anuais, estima-se que o FSPC possa arrecadar cerca de cinco milhões de euros por ano. Este valor, não sendo significativamente elevado, poderá, no entanto, ser um importante contributo na recuperação do património cultural e museológico de um país que tem nos seus monumentos e museus uma importante componente de atracção e de diferenciação da oferta turística, que tão importante é na economia nacional actual.
Apesar de o seu lançamento acontecer no próximo dia 18 de Maio de 2021, Dia Internacional dos Museus, a ideia de criação deste novo jogo de fortuna ou azar não é nova. Segundo foi anunciado, a iniciativa estava programada para ter acontecido durante o ano de 2020 mas a contingências da pandemia de covid-19 e, bem assim, a complexidade do modelo operacional, impediram ou prejudicaram a sua implementação nos timings programados.
O lançamento deste novo produto de jogo, não obstante a bonomia da ideia que lhe está subjacente, traz de volta a velha discussão à volta da tolerância à própria indústria dos jogos de fortuna ou azar e faz-nos recordar a comum classificação anglo-saxónica que lhe é atribuída – “sin industry” –, juntamente com outras indústrias produtoras e exploradoras de produtos e actividades económicas a quem são atribuídos efeitos nocivos.
Se, por um lado, todos reconhecemos a importância do financiamento da salvaguarda do património cultural nacional, num Estado com recursos cada vez mais limitados, também todos recordámos os inúmeros (mas talvez pouco conhecidos) estudos publicados maioritariamente em foros académicos, que nos dão nota de um acentuado aumento de casos de jogo patológico ou então de uma crescente propensão, no caso particular, do povo português, para gastar uma cada vez maior parte do parco orçamento familiar no consumo dos denominados jogos sociais, como acontece com as raspadinhas da SCML.
Segundo dados publicados em 2020, Portugal será o pais da Europa onde se gasta mais dinheiro em raspadinhas per capita, correspondendo esse valor a mais do dobro da média europeia. A introdução de mais oferta no sector não ajudará certamente a diminuir a tendência.
Por outro lado, seria importante que existissem estudos capazes de confirmar e identificar esta preocupante posição cimeira nos rankings europeus. Seria também importante que fossem criados mecanismos de protecção dos jogadores e das respectivas famílias, por exemplo, à semelhança do que existe para outras formas de jogo, como é dos casinos de base territorial e online. Desde há muito que tem sido aventada a criação de um cartão do jogador que pudesse servir de diagnóstico e alerta ao jogador menos atento ao seu histórico de apostas. Por outro lado, urge estabelecer um mecanismo de (auto)exclusão que permita não só aos jogadores, como aos seus familiares directos, pôr termo a comportamentos prejudiciais ao indivíduo e aos membros do seu agregado familiar.
É indiscutível a pegada social gerada pelas receitas dos jogos explorados pela SCML, em variadíssimos sectores da sociedade portuguesa, desde a data em que esta entidade iniciou a exploração dos chamados “jogos sociais”.
Um raciocínio de base excessivamente empírica talvez nos leve a concluir que o balanço entre os prós e os contras deste tipo de oferta de jogos de fortuna ou azar, de acesso fácil e de certa forma indiscriminado, continua a ser positivo. Não obstante, a exigência e a responsabilidade de quem nos governa será a de garantir que os jogos de fortuna ou azar cumprem a sua função primordial – a de serem uma forma de entretenimento com natureza eminentemente lúdica e, ao mesmo tempo, uma actividade que financia uma parte significativa da economia social, da cultura, do turismo e de tantas outras actividades que, através desse financiamento, vêem regressar à sociedade parte daquilo que é gasto pelos apostadores, também eles, parte dessa sociedade.
Numa era em que dispomos de importantes mecanismos de recolha de dados e de controle da actividade económica, seria importante que o Estado recolhesse informação fidedigna, rigorosa e suficiente para permitir a tomada de decisões fundamentadas em factos e efectivas tendências comportamentais e que não corresse o risco de tornar perniciosa uma ideia, como a do lançamento da raspadinha do “Património Cultural”, que, ab initio, só teria virtudes.