A morte anunciada do MPLA

Os gérmens de decadência no MPLA são perceptíveis. Cafunfo é um sintoma claro da incapacidade de este partido se renovar e democratizar.

É hora de os angolanos começarem a chamar as coisas pelos seus próprios nomes.

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É hora de os angolanos começarem a chamar as coisas pelos seus próprios nomes.

Abala-me olhar para o grande espelho chamado Angola e ver nele novos crimes atrozes apontados ao coração da cidadania e da sociabilidade política. Quando se pensava que as velhas práticas de ilegalidade contra a vida humana no regime do MPLA se tinham moderado depois das fatídicas manifestações de massas o ano passado em Luanda, no Huambo e noutras províncias, eis que as mesmas maldições de sempre reaparecem agora mais intensas.

Cafunfo, região mineira da Lunda Norte, à luz dos últimos acontecimentos ali desenrolados, simboliza o reacender de antigas taras políticas de violência no MPLA, as quais jamais se dissiparam e são responsáveis por tantas dores causadas a milhões de homens e mulheres angolanas. A escalada de força naquela região pela mão assassina de agentes fardados contra populações indefesas foi tão inaudita que se faz urgente avaliar com as melhores lentes de entendimento o que se passa no país.

Foto
Zdzislaw-Beksinsk (pintor polaco), sem título

A situação é grave, não me canso de o dizer nos meus textos de intervenção. A imagem que retenho desse espelho enterrado na minha alma é de uma pátria obscura. Tanto quanto se sabe, no momento em que escrevo estas palavras, ainda sopram no Cafunfo e nas regiões limítrofes ventos fortes de terror ateados pelos mercadores da morte (policiais e militares) que deixam atrás de si, pelos caminhos por onde passam, rastros indeléveis de medo e ameaças. São, de facto, preocupantes os sinais que nos chegam dessas longínquas fronteiras do país e, ainda mais, as sombras perigosas que se derramam por toda a Angola.

Os rumos da governação do general Soberano em Luanda revelam-se erráticos e perversos nas suas finalidades. As grandes placas de sustentação do poder estão corroídas, aprofunda-se o descrédito e a desmoralização dos seus corifeus e partidários. A defesa do regime, como se tem percebido há bastante tempo, repousa exclusivamente na psicologia da intimidação, ou seja, no poder do cassetete e da metralhadora. A razão e a inteligência perderam espaço no país, sobretudo a inteligência desde logo banida nos alvores da independência nacional pela facção hegemónica e anti-democrática de Agostinho Neto. A este mergulho nas trevas correspondeu o fim do debate livre e franco de ideias e a sua substituição por um deserto de intolerância e ódio contra a liberdade de pensamento. Qualquer manifestação de inconformismo para com as políticas do partido passou a ser severamente rechaçada.

Com a tragédia do Cafunfo, a hipocrisia e a pequenez mental que sempre infestou os gabinetes e os palácios do governo e do Partido alcançou o seu ponto mais elevado. Sem excluir o papel pestilento da imprensa domesticada pelo poder político. Nas explicações oficialmente dadas sobre os acontecimentos na Lunda Norte, a linguagem na boca dos poderosos rompeu todos os diques de decência e prostituiu-se completamente. A falsidade e a impudicícia tomaram conta da mente dos governantes e dos seus lacaios. Uns e outros com os seus discursos robóticos caíram em ridículas contradições nas suas falas e escritos. Sem nenhum sentido de pudor, os ministros do Interior, da Justiça e o próprio comandante-geral da polícia, todos alternando-se entre si com as suas línguas rebuscadas e frases de efeito, embrulharam-se em relatos ambíguos e capciosos numa triste demonstração de falta de decoro e respeito para com os governados.

Fosse um governo sério, pautado por princípios éticos e transparentes, de imediato se reconheceria a enormidade do crime cometido. Desde as chacinas do 27 de Maio que as práticas mais hediondas se repetem. E Cafunfo, pela sua natureza, insere-se nesta linha de atrocidades e enquadra-se na categoria de atentado perpétuo. De novo as forças de segurança protagonizaram uma acção sanguinária, deitando por terra as ladainhas recitadas pelo MPLA. Na verdade, as versões oficiais estão “[...] contaminadas pelos vaivéns da política” [como diria o filósofo e jornalista argentino Miguel Wiñazki]; estão “manchadas e enterradas sob as pedras sujas da impunidade”[1]. Só um governo ditatorial preocupado em defender a “conveniência como valor político supremo” se apressa a justificar os seus abusos e canalhices com toda a sorte de malabarismos verbais, ao mesmo tempo que faz vista grossa sobre as violações aos direitos humanos expostas à vista de todo o mundo.

O espelho da tragédia indiscutivelmente existe e a imagem que transmite é de uma guerra ininterrupta do MPLA contra a natureza humana. Indiferente a esta tragédia, o poder político desdobra-se em discursos para negar a borrasca e os escombros que ele próprio criou com o seu modelo de organização do país, contrário à paz e à coesão social. Os golpes de sangue, os corpos despedaçados e os desaparecimentos forçados causados pela polícia do Cafunfo não deixam margem a dúvidas sobre as acções de selvajaria que norteiam o regime político do general João Lourenço. A ilegalidade que de longa data se institucionalizou em Angola, tornou-se agora mais explícita. O carácter de intervenção das instituições repressivas é inimigo da contenção e do diálogo. Nos padrões de acção destas instituições não cabem outros métodos que não sejam os da violência e da destruição. Está mais que comprovado que a ideologia da força física e do terror representa o centro de gravidade do regime, sem o qual o MPLA-Estado jamais conseguiria manter-se de pé.

Que o digam as populações fustigadas no ranço diário das suas vidas por festins de crueldade das forças policiais. Bandos de chacais cobertos por distintivos do Estado impunemente descarregam a sua fúria assassina sobre as massas, usando artefactos letais de forma indiscriminada sob o pretexto obsceno, no caso concreto do Cafunfo, de que a manifestação da juventude configurava um propósito insurreccional de largas proporções. A esta distorção da realidade juntou-se uma outra: de que Angola se acha perigosamente confrontada com ameaças estrangeiras e que os líderes da “rebelião” na Lunda Norte vieram de países vizinhos.

É escandalosa e ultrajante esta desfaçatez e conduta do establishment angolano que, invariavelmente, se subtrai de apresentar provas que certifiquem a veracidade das suas acusações. O MPLA e o seu governo nunca fizeram esforço algum para clarificar situações relativas a épocas e a momentos negros da História marcados por matanças e sangue. O passado está cheio de exemplos. A visão que essa burocracia partidária guarda das coisas é estática e só a sua interpretação enviesada dos factos se reclama de válida frente aos protestos da sociedade civil. Isto e a obsessão de nunca aceitarem “enfrentar a verdade”, de se fingirem amnésicos e culparem os outros de serem a fonte de todos os males nacionais. Escarafunchar a questão do Cafunfo em busca de respostas necessárias e convenientes significa, na óptica dos donos do poder, “tumultuar” o ambiente de paz no país. É quase um delito. De novo se brande a mentira, a ameaça e o silêncio como armas poderosas de intimidação.

Apesar do medo que paira no ar e escorre do coração das pessoas, a comunidade nacional não se intimidou. Sectores e grupos independentes e democráticos da sociedade, e até personalidades da Igreja Católica e algumas franjas do MPLA que, finalmente, parecem estar a sair das trincheiras da mudez em que se tinham refugiado, soltaram um pronto e contundente grito de repúdio contra a tragédia do Cafunfo. Exigem responsabilidades que naturalmente não podem deixar de lado a pessoa do presidente da República, a meu ver o principal responsável pelos destinos de morte em que naufragaram os mais recentes conflitos internos do país. Porém, tudo indica que nem o general João Lourenço se predispõe a arcar com o peso moral da responsabilidade por tanta barbárie. O seu pensamento, pelos vistos, estrutura-se em sintonia com as velhas teorias dogmatistas (com destaque para o maniqueísmo), segundo as quais, diante de dois princípios opostos e inconciliáveis (de um lado o MPLA e do outro o mundo), quem tem sempre razão é o MPLA, símbolo perfeito do bem. O portador da diferença encarna sempre o mal. Uma estranha concepção, admita-se, que, quando alçada a política de Estado, é causadora de catástrofes humanas incomensuráveis.

A minha posição a este respeito é bem conhecida pelos artigos de reflexão que tenho publicado neste jornal a denunciar outros flagelos sociais. Depois dos acontecimentos do Cafunfo e tendo em conta o significado das cenas que se puderam ver, extremamente graves pela acção infame da polícia na forma como lidou com os cadáveres das vítimas, sem sequer garantir assistência aos feridos, posso afirmar com total segurança que os alicerces do regime do MPLA começam a abrir fissuras. O que até ontem parecia resistir a todos os vendavais (refiro-me ao trono do general), actualmente até este baluarte estremece. As fendas são visíveis nos mínimos pormenores. Basta estar atento aos estados de espírito da comunidade militante do partido. A cada dia desfalecem os seus sonhos de grandeza e a sua identidade como grupo. A fogueira de expectativas que se produziu há três anos em torno do novo messias, lentamente se desfaz em cinzas. Nem mesmo a quimera sobre as qualidades superiores do general e sobre a sua capacidade para assegurar uma “nova ordem social redentora”, já nem isto se sustenta. No lugar desta oca esperança estão a nascer sentimentos de angústia e uma grande preocupação diante da crescente instabilidade social que percorre o país e diante do aumento das masmorras e dos assassinatos.

Um quadro desolador. Os militantes, com efeito, agonizam na dúvida, desorientados, nenhuma das promessas do novo líder se cumpriu. Ao invés disso, os velhos caprichos ditatoriais e as velhas políticas arbitrárias ganharam mais ascendente por reforço dos dispositivos de intimidação dos aparelhos de segurança. Paralelamente assiste-se ao colapso da governabilidade devastada pela incompetência e pela corrupção de uma burocracia soez; e por uma classe plutocrática que coloniza uma maioria da população sem voz, privada de direitos concretos nas políticas económicas, sociais e culturais e que suporta o fardo da marginalidade e da pobreza. Uma população, em suma, sem direitos de cidadania e que, pelas bitolas do regime do MPLA, somente existe como entidade abstracta.

O tempo não volta atrás. Os erros e os crimes contra o país são em tal grau que se esboroa a mitologia do grande partido revolucionário, moderno, que em 1975 se impôs nos meios urbanos, especialmente na capital, e que apareceu estuante de promessas sobre uma nova Angola de progresso e bem-estar para todos os seus filhos. Hoje, aos olhos dos angolanos, esse partido de referência (que a princípio seduziu a aristocracia pensante, além de uma ampla gama de pequenos comerciantes, trabalhadores artesanais, funcionários, camponeses e, até, a camada social dos indigentes), hoje esse partido, no mínimo, suscita desdém e temor nas massas. Os seus dirigentes já não têm mais condições de invocar a sua condição de revolucionários, se alguma vez o foram efectivamente. Tornaram-se reaccionários pela sua guinada à direita, revolvem-se em águas turvas e navegam na contra-corrente da História, incapazes de se modernizar. A fábula do Eldorado mplista desintegrou-se. A dor que os nativos experimentam é terem diante de si um país esfrangalhado, prisioneiro nas cavernas do ditatorialismo do MPLA. E, portanto, descrente de si mesmo e sem confiança nessa clique de governantes, falha de prestígio moral e iguais a momos conhecidos pelas suas práticas de criminalidade institucional que fizeram da doutrina do lucro capitalista sem freios e irresponsável o seu modo de vida.

Para uma boa parte dos militantes do MPLA o que está a acontecer significa um mau sonho, justamente porque sempre acreditaram em mitificações históricas e num paraíso enganador de “democracia” onde o seu partido reinaria por longo tempo. Sucede, porém, que nenhuma força se eterniza no poder por conta de tantos ódios lendários (que permanecem uma má recordação desde o período da luta armada de emancipação); nem por conta de políticas reaccionárias de violência continuada sobre o corpo social. A democracia do MPLA é uma anedota de abstracção que se utiliza, quando muito, como pilhéria. Faz lembrar aquele gracejo que divertia as pessoas na União Soviética: “Qual é a diferença entre a ‘democracia socialista’ e uma película muda? Nesta última, vê-se uma história, mas não se ouve o que as personagens dizem, ao passo que na primeira se ouve falar às vezes de democracia, mas é impossível vê-la”[2]. No MPLA e no seu regime o retrato é análogo. A democracia não passa de uma farsa que os senhores do Bureau Político e do Comité Central gostam de exibir no seu teatro de enganos.

São traiçoeiros os demónios da intranquilidade soprados por estas memórias e testemunhos. Os receios da militância perante o futuro incerto, mas ameaçador, agigantam-se. Dão a sensação incómoda de que o seu mundo idílico de domínio político sobre o país vai desaparecer. Como todos os portadores de expectativas milenaristas, os militantes do MPLA estão obcecados pelo “medo apocalíptico de entrar numa era de escuridão”, para usar uma expressão de Mark Lilla, historiador americano das ideias[3], e de tão cedo não saírem desse labirinto.

Os gérmens de decadência no MPLA são perceptíveis. Cafunfo é um sintoma claro da incapacidade de este partido se renovar e democratizar. No seu interior perdeu-se definitivamente a percepção da fronteira que separa uma “sociedade política civilizada de uma sociedade bárbara”. A casa sombria de violência e brutalidade ideológica que se conhece no MPLA, é uma enfermidade política para durar. O seu retrocesso para a escuridão já se iniciou, a morte é uma questão de tempo. Mas até à desintegração total haverá muitos outros Cafunfos.

 

[1] Miguel Wiñazki. “El Atentado Perpetuo”, Clarin (Buenos Aires), 31 de Outubro de 2006.

[2] A.A.V.V. Humor Que Veio do Frio. Antologia de Anedotas, [prefácio de Sérgio Vilar], Lisboa, Edição de Perspectivas & Realidades, Abril de 1980, p. 9.

[3] Mark Lilla. A Mente Naufragada. Sobre o Espírito Reacionário [tradução de Clóvis Marques], Rio de Janeiro, Editora Record, 1.ª edição, 2018, p. 8.