A vontade de renovar a convergência à esquerda
Os desafios que enfrentamos exigem uma governação à esquerda, mas o posicionamento ideológico não é condição suficiente para os vencermos. Precisamos também de uma relação de compromisso político que proporcione ao Governo as condições para não só ser estável, mas também forte e ágil nas respostas que dá ao país.
O país atravessa neste momento a maior crise económica desde 1928. Apesar do reforço de financiamento, a pandemia colocou em stresse o SNS, as famílias e as empresas. Ninguém podia estar preparado para a paragem súbita da economia mas o Estado deve proteger quem estava mais exposto enquanto investe na recuperação da economia e no combate ao vírus.
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O país atravessa neste momento a maior crise económica desde 1928. Apesar do reforço de financiamento, a pandemia colocou em stresse o SNS, as famílias e as empresas. Ninguém podia estar preparado para a paragem súbita da economia mas o Estado deve proteger quem estava mais exposto enquanto investe na recuperação da economia e no combate ao vírus.
Os desafios que enfrentamos exigem uma governação à esquerda, mas o posicionamento ideológico não é condição suficiente para os vencermos. Precisamos também de uma relação de compromisso político que proporcione ao Governo as condições para não só ser estável, mas também forte e ágil nas respostas que dá ao país. Esse é um compromisso que não é só entre as partes, mas com o país. Não é, também, um compromisso novo, inusitado, desfigurante ou castrador. É a renovação da Geringonça, que tenho vindo a reivindicar, e que em nada constrangeu a pluralidade entre os nossos partidos em temas como a Europa nem tampouco a fiscalização atenta e crítica que PCP, PEV, BE e até o PAN fizeram do trabalho do Governo.
As circunstâncias no rescaldo das eleições legislativas do ano passado impuseram um registo diferente a esta relação. O PS saiu reforçado eleitoralmente, o PCP dispensou acordos escritos e o BE só começava a negociar se discutíssemos leis laborais que tinham entrado em vigor há dias. Esse registo funcionou, apesar de tudo, até ao verão do ano passado, tendo sido amargamente desfeito na discussão do Orçamento de Estado para 2021.
Não foi por falta de aviso ou de disponibilidade da parte de António Costa – que o reiterou em abril e, de novo, no Estado da Nação em julho. Em agosto, num voto de fidelidade, o primeiro-ministro até disse que não havia governo sem parceiros à esquerda. Porque nenhum tema onde haja injustiça pode ser tabu, nem mesmo as leis laborais ficaram fora da mesa de negociação.
Não se pode, pois, dizer que esta situação foi gerada por uma “via centrista” do Partido Socialista. Não o julguemos por palavras, mas por ações. Pode o PS ser acusado de virar ao centro por aprovar um Orçamento onde somos dos poucos países da Europa que paga o layoff a 100% e onde se criam e reforçam prestações sociais para que ninguém fique para trás? Ou onde o investimento público cresce 56% e os impostos baixam para quem mais precisa e mais investe? Para quem insiste na tese, a prova do algodão foi mesmo a viabilização, por parte do PCP e do PEV, do Orçamento.
Como em 5 Orçamentos do Estado antes desse, e um Orçamento Suplementar, o caminho feito neste Orçamento não é estranho aos portugueses. É um caminho de diálogo, onde cada parte evolui face à sua posição inicial, não abdicando dela mas convictos da virtude desse compromisso. Foi, aliás, essa convicção que permitiu criar 346 mil empregos em 4 anos, aumentar o salário mínimo em 130 euros ou reduzir as propinas em 366 euros. Em suma, uma convicção que fez de Portugal um país melhor.
Lamento, por isso, que, por via de um rascunho de moção estratégica, a liderança do Bloco de Esquerda insista num suposto centrismo para justificar uma rutura que, em termos simples, representa uma recusa em assumir responsabilidades na construção de respostas sociais e ecologistas às crises que vivemos. «Um político assume-se.» Assim dizia Mário Soares, que na penumbra dos tempos da troika organizou na Aula Magna o embrião da geringonça. Se alguns no Bloco querem deixar de construir soluções e passar apenas a criticar a falta delas, devem assumi-lo, tal como devem fazê-lo aqueles que dentro do PS tiverem essa pretensão.
Devem, no entanto, assumi-la sabendo que, em ambos os casos, ela é autodestrutiva. Afinal, mais do que dececionante para quem acredita na geringonça, essa via isolacionista seria abandonar quem mais precisa de um Governo de esquerda forte, estável e ágil – os trabalhadores e os desempregados, os precários e os mais pobres, os jovens e os reformados, as minorias.
As consequências são duras de imaginar. Karl Marx teorizava que a história se repetia, primeiro como tragédia e depois como farsa. Se a falta de entendimento à esquerda em 2011 acabou por nos conduzir à tragédia de convidar a troika e dar o poder a uma direita neoliberal, hoje a esquerda democrática, em todos os partidos e fora deles, precisa de refletir se a falta de diálogo e convergência não será uma farsa que acabará por reforçar a extrema-direita.
É, por isso, fundamental que saibamos ter a coragem de assumir compromissos. Como se demonstrou no último Orçamento com o PCP, PEV, PAN e as deputadas não-inscritas, e ao longo dos cinco orçamentos anteriores, o diálogo e a convergência podem mudar e melhorar a política governativa. Esse compromisso é igualmente importante no poder local, onde a proximidade às pessoas e ao território pode dar ainda mais oportunidades para que a convergência à esquerda consiga concretizar saídas sociais e ecologistas para estas crises.
Os compromissos que precisamos devem ter um horizonte de esperança e uma ambição reformista. É possível traçarmos juntos um caminho de combate às desigualdades e investimento nos serviços públicos, que assente as fundações de uma economia inovadora, sustentável e competitiva, capaz de gerar pleno emprego digno e de devolver a tantos portugueses confiança na democracia. Já o fizemos antes, podemos fazê-lo de novo. Aqui, quem decide é a vontade.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico