Covid-19: a doença que deixa marcas no raio-x e muitas incertezas nos jovens
A pandemia está a fazer um ano, mas as marcas que o vírus deixa nos adultos e crianças que infecta podem durar mais do que isso e até tornar-se crónicas. Algumas são já visíveis nos raio-x, mas ainda pouco se sabe quanto a efeitos a longo prazo.
A história de Francisco, o primeiro adolescente português a sofrer uma sequela da covid-19, uma “cicatriz” no coração, teve um final feliz, mas há ainda muita incerteza quanto aos efeitos crónicos do vírus que parou o mundo.
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A história de Francisco, o primeiro adolescente português a sofrer uma sequela da covid-19, uma “cicatriz” no coração, teve um final feliz, mas há ainda muita incerteza quanto aos efeitos crónicos do vírus que parou o mundo.
A pandemia está a fazer um ano, mas as marcas que o vírus deixa nos adultos e crianças que infecta podem durar mais do que isso e até tornar-se crónicas. Algumas são já visíveis nos raio-x, mas ainda pouco se sabe quanto a efeitos a longo prazo.
As estatísticas indicam que cerca de 50% da população acabe por ter sequelas. Nas crianças e adolescentes, a doença é mais rara, e as sequelas também são menos frequentes, mas ainda assim deixam marca.
Maria João Brito, directora da unidade de infecciologia do Hospital Dona Estefânia, explicou à Lusa que as alterações no corpo só estabilizam “seis, nove ou 12 meses após ter ocorrido a doença”. “Só nessa altura podemos avaliar”, disse.
Em entrevista à agência Lusa, a especialista explicou que nas quase 800 crianças e adolescentes que a Estefânia recebeu com covid-19 — cerca de 240 precisaram de internamento —, há dois tipos de sequelas: as orgânicas, como os problemas respiratórios ou cardiovasculares, e as inorgânicas, como a ansiedade, a depressão e até a obesidade.
Como exemplo, Maria João Brito aponta o caso das crianças que estiveram internadas com pneumonias complicadas, que irão todas “fazer provas de função respiratória”. Mas até para isso é preciso esperar: “Essas provas só terão valor feitas seis a nove meses depois da doença.”
Além das sequelas respiratórias, a especialista indicou também as que têm que ver com a parte cardíaca, por exemplo, em crianças que tiveram inflamação no músculo do coração. Cerca de 20 estão a ser acompanhadas através de um protocolo feito com a cardiologia pediátrica do Hospital de Santa Marta.
Ecocardiogramas e ressonâncias ao coração, feitas numa fase posterior, são alguns dos exames que ajudam a perceber as marcas deixadas pelo SARS-CoV-2. E são repetidos três, seis ou nove meses depois, dependendo dos casos.
“Algumas crianças, que fizeram miocardites, ficam como que com cicatrizes no coração e deixam de poder fazer a sua actividade física normal, como correr ou jogar futebol”, explicou.
Conceição Trigo, da cardiologia pediátrica do Hospital de Santa Marta, disse à Lusa que as sequelas da parte cardíaca estão ainda em estudo, mas lembrou que “a maior parte das crianças têm um percurso relativamente benigno da doença”.
“De facto, durante a fase aguda da covid-19 pode haver lesão directa das células cardíacas”, afirmou a cardiologista pediátrica, que no corredor colorido pelos alunos do Instituto de Artes e Ofícios da Fundação Ricardo Espírito Santo Silva, com o apoio da Fundação do Gil, falou ainda num “quadro inflamatório que pode ocorrer após a infecção”, mesmo que os doentes não tenham tido sintomas na fase aguda da doença.
Chama-se síndrome inflamatória multissistémica, “envolve vários órgãos” e, quando atinge o coração, também resulta na “inflamação do miocárdio”, explica.
A médica contou que a evolução destes casos é muito variável e que tudo depende da gravidade inicial da doença. No caso de Francisco, o primeiro adolescente em Portugal a apresentar esta síndrome inflamatória multissistémica, o desfecho foi feliz, mas o susto para os pais e irmã foi enorme.
À Lusa, a mãe de Francisco, Madalena, disse que foi surpreendida pela doença do filho, que sempre tinha sido uma criança saudável: “Nem me lembrava da última vez que ele tinha ficado doente.”
Foi em Abril de 2020, quase um mês depois de a mãe ter estado infectada, que Francisco acordou com febre alta. Como não passava, a mãe levou-o ao Hospital Dona Estefânia, onde lhe fizeram diversos exames. Foi nas análises ao sangue que “perceberam que havia um foco grande de infecção”.
Ficou logo internado, a 23 de Abril, e os médicos “iam tentando perceber o que tinha”, contou a mãe. Os cinco testes à covid-19 deram negativo. Só mais tarde o teste serológico identificou o novo coronavírus através dos anticorpos no organismo da criança.
“No dia 25 de Abril — nunca mais me hei-de esquecer esta data — ele estava muito apático”, relatou Madalena, explicando que só nessa altura, depois de Francisco se queixar de uma “impressão no peito”, é que os exames começaram a mostrar valores preocupantes e revelaram uma pneumonia bilateral.
A partir dessa altura, “começou a inflamar tudo”, desenvolveu miocardite, pancreatite e foi para os cuidados intensivos.
“Lá dentro foi um terror. Eu via nos olhos deles, todos mascarados, que estavam à nora. Foi muito assustador”, desabafou. Só depois de três dias de coma induzido é que Francisco, na altura com 13 anos, começou a melhorar.
Esteve internado cerca de 20 dias, perdeu dez quilos e, como não podia fazer exercício com impacto ou esforço cardíaco — proibição que se mantém até hoje —, Francisco fez pilates para recuperar.
Madalena disse que o desconhecimento foi o que mais a assustou no caso do seu filho, ainda hoje a ser seguido na Estefânia.
Além das sequelas que se vêem nos exames de imagem do hospital, há as outras, que não se vêem, mas se sentem, como a ansiedade e a depressão.
“Percebemos que as pessoas que têm esta doença podem vir a adquirir ansiedade ou ficar deprimidas. Isto nunca acontece com as crianças mais pequeninas (...), mas nos adolescentes constatámos que, mesmo depois da doença, havia uma grande carga de ansiedade e que alguns ficavam deprimidos”, conta Maria João Brito.
Alguns jovens têm apoio da pedopsiquiatria e outros são medicados. Durante quanto tempo as sequelas vão permanecer? Ninguém sabe.
“É muito cedo. Há doentes que ainda nem sequer têm os seis meses para avaliar sequelas. Nesta altura ainda temos muito em aberto”, disse.