A viagem de 1700 quilómetros para levar a vacina da covid-19 aos trabalhadores de zonas rurais na Índia

O trajecto da vacina da covid-19 entre a fábrica e as zonas rurais da Índia é pontuado pela incerteza. Há estradas em terra, grupos armados e temperaturas quentes a dificultar a viagem. Muitos indianos dizem que não se querem vacinar por receio de reacções adversas. Governo apela os profissionais de saúde que dêem o exemplo.

Foto
reuters

Reena Jani levantou-se cedo, terminou as tarefas no frio intenso de Janeiro e subiu a colina até chegar à estrada que contorna a remota vila de Pendajam, no leste da Índia, para apanhar boleia do vizinho.

A profissional de saúde de 34 anos andou na pequena motocicleta durante mais de 40 minutos, através de encostas pontilhadas de arrozais, para chegar ao Centro de Saúde Comunitário de Mathalput.

Jani foi uma das primeiras pessoas a ser vacinada na Índia no início de Janeiro, quando o país implementou um programa de vacinação que o governo considera o maior do mundo. O nome de Jani fazia parte de uma lista de 100 profissionais de saúde que seriam vacinados ao mesmo tempo e no mesmo centro.

Foto
Jani prepara-se para ir tomar a vacina Danish Siddiqui

Mas Jani estava preocupada. Tinha ouvido rumores de efeitos colaterais graves e não sabia o que aconteceria se ficasse doente. “Fiquei assustada por causa do meu filho e das minhas filhas. Se algo acontecer comigo, o que é que eles vão fazer?”, disse à agência Reuters.

Até chegar àquele centro, a vacina fez uma viagem ainda mais longa e mais atribulada do que a de Jani. Foi transportada de avião, camião e carrinha durante cerca de 1700 quilómetros. E desde o momento em que saiu da fábrica até chegar ao centro onde os 100 profissionais seriam vacinados teve de ser mantida a temperaturas estáveis.

A chegada em segurança ao distrito de Koraput, onde há conflitos armados activos no meio das colinas e florestas densas, foi uma prova do planeamento cuidado e detalhado e do trabalho das autoridades do estado de Odisha.

Foto
A boleia de Jani Danish Siddiqui

Mas as autoridades reconhecem que esta é apenas a ponta do icebergue.

As vacinas dadas até agora (pouco mais de um milhão), administradas principalmente a trabalhadores essenciais como Jani, são apenas uma pequena parte da primeira fase de um programa de vacinas que o país espera que, eventualmente, proteja os 1,4 mil milhões de indianos contra o novo coronavírus.

Só quando a terceira fase for lançada e se começarem a vacinar 270 milhões de pessoas consideradas vulneráveis é que o governo saberá se o plano de distribuir as doses em terrenos muitas vezes hostis e no meio de temperaturas desafiantes será bem-sucedido.

“O problema acontecerá na terceira fase quando começarmos a vacinar a população em geral”, disse Madhusudan Mishra, distribuidor do distrito de vacinas de Koraput. “Esse será o verdadeiro desafio.”

Foto
Zonas rurais da Índia Danish Siddiqui

Fornecer as vacinas é uma coisa. Convencer as pessoas a aceitá-las é outra.

O cepticismo em relação à segurança e eficácia das vacinas contra a covid-19 é alto na Índia, principalmente nas áreas rurais, dizem as autoridades; e a desinformação que se espalha nas redes sociais e através do passa a palavra pode minar os esforços.

A vacina da covid-19 que Jani tomou foi desenvolvida pela farmacêutica AstraZeneca e pela Universidade de Oxford. A Índia também está a vacinar pessoas com outra, desenvolvida pela Bharat Biotech.

Foto
Reena Jani Danish Siddiqui

O plano de vacinação foi posto em curso ao mesmo tempo que a Índia se aproximava dos 11 milhões de casos confirmados e das 150 mil mortes, ficando atrás apenas dos Estados Unidos em ambos os indicadores, embora tenha uma população muito maior.

Fabricados na cidade de Pune, no oeste do país, pelo Serum Institute of India, o maior fabricante de vacinas do mundo, cerca de 40.800 frascos da vacina da AstraZeneca foram transportados por uma linha aérea comercial para a capital de Odisha, a 12 de Janeiro.

A Índia distribuiu os 16 milhões de doses das duas vacinas aprovadas pelos estados e territórios, que, por sua vez, as dispersaram usando um “exército” de motoristas e infra-estruturas que já estavam preparados para outros programas de vacinação, mas que foram reforçados durante a pandemia de covid-19. 

Em Odisha, após um início atrasado a 13 de Janeiro, vários funcionários do governo retiraram os frascos de uma arca frigorífica antiga do centro de vacinas e contaram-nos cuidadosamente, antes de os embalar em caixas isoladas com sacos de gelo para os manter entre os dois e os oito graus Celsius durante três dias.

Depois, o motorista veterano do departamento de saúde, Lalu Porija, teve de conduzir a noite toda na sua carrinha para chegar ao local e fazer, a seguir, os 500 quilómetros da viagem de volta para transportar as vacinas para Koraput. Como companhia teve um polícia armado e à paisana sentado no lugar do passageiro. 

Foto
O motorista Lalu Porija Danish Siddiqui

“Estou um pouco cansado”, disse Porija, quando parou para beber um chá, já ao final da noite, depois de um congestionamento atrasar em várias horas a viagem de volta.

Porija conduziu quase 24 horas durante três dias para recolher e entregar as vacinas na cidade de Koraput. Passou por vacas, escombros, nevoeiro espesso e curvas apertadas e, acima de tudo, lutou contra a fadiga constante.

A 15 de Janeiro, no principal entreposto de vacinas de Koraput, vários profissionais de saúde contaram, embalaram e carregaram quantidades mais pequenas para os cinco locais de vacinação do distrito, incluindo o Centro de Saúde Comunitário Mathalput, a cerca de 30 quilómetros de distância.

Uma pequena carrinha branca saiu ao meio-dia, levantando atrás de si a poeira das estradas estreitas do interior, para fazer uma entrega em vários locais. Mais uma vez, um polícia armado estava sentado dentro do veículo. “É a vacina mais esperada”, disse um profissional de saúde da Mathalput aos colegas, enquanto carregava uma caixa de vacinas.

A Índia traçou um plano para vacinar cerca de 300 milhões de pessoas até Agosto. Na primeira fase, que começou no início de Janeiro, a meta é vacinar dez milhões de profissionais de saúde, incluindo Jani. Depois, há que inocular 20 milhões de trabalhadores dos serviços essenciais e, por fim, 270 milhões de pessoas consideradas mais susceptíveis ao novo coronavírus.

Fotogaleria
Danish Siddiqui
Fotogaleria
Danish Siddiqui

Depois destes primeiros grupos não há um plano claro, embora o governo afirme que todos os indianos que quiserem ou precisarem da vacina a vão receber.

Em Koraput, uma equipa de funcionários passou meses a elaborar um plano de vacinação local. Como grande parte do distrito não tem acesso à internet, foram escolhidos locais de vacinação com boa conectividade. E onde a cobertura móvel era irregular, como na vila de Jani, os profissionais de saúde eram convocados para reuniões em que eram informados sobre os planos de vacinação. As pessoas registadas para serem vacinadas também recebiam visitas destes profissionais em casa.

Jani tornou-se activista social de saúde credenciada (ASHA, na sigla inglesa), uma agente comunitária de saúde e um pilar do sistema de saúde rural da Índia há cerca de sete anos.

Foto
Membros da polícia vigiam centro de vacinação Danish Siddiqui
Foto
Profissionais de saúde contam as vacinas Danish Siddiqui

Ajuda a monitorizar mulheres grávidas na aldeia de 500 pessoas, a fazer testes à malária e distribui medicamentos básicos para a febre e diarreia.

O principal ganha-pão da família de cinco pessoas é o salário de Jani, que recebe 3000 rupias (cerca de 34 euros) por mês. É esse dinheiro que mantém as duas filhas e o filho na escola.

Foto
A vila de Jani Danish Siddiqui

Quando soube que ia ser vacinada, Jani disse que não estava preocupada. Só depois ouviu o boato. “Alguém me disse que as pessoas desmaiavam, tinham febre e algumas morriam depois da injecção. Por isso é que estava com medo. Mas depois correu tudo bem”, disse a mulher, já visivelmente aliviada depois de a injecção não produzir efeitos colaterais imediatos.

Num inquérito realizado pela plataforma online LocalCircles, sediada em Nova Deli, 62% dos 17 mil entrevistados não sabiam se queriam receber a vacina e estavam preocupados com possíveis reacções adversas.

Estes receios também crescem entre os trabalhadores da área da saúde, levando o governo a apelar, esta semana, aos médicos e enfermeiros da linha da frente que não recusem as injecções depois de muitos estados falharem as metas iniciais de vacinação.

Foto
Jani a ser vacinada Danish Siddiqui

Jani, nervosa, recebeu finalmente a primeira dose da vacina: um pequeno passo na missão da Índia para combater a pandemia.