É preciso esquecer para alimentar a memória
O que se conta a partir do que se diz.
“O esquecimento é ‘a outra cara’ da memória, ou o aspecto mais saliente da memória: é muito mais o que esquecemos que o que recordamos.” Ivan Izquierdo, neurocientista brasileiro de origem argentina
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“O esquecimento é ‘a outra cara’ da memória, ou o aspecto mais saliente da memória: é muito mais o que esquecemos que o que recordamos.” Ivan Izquierdo, neurocientista brasileiro de origem argentina
A mui nobre arte do esquecimento
Ajudou a desvendar os mecanismos bioquímicos e fisiológicos por trás da formação das memórias e a forma como essas memórias nos surgem, como persistem e como são esquecidas. As suas investigações serviram de base para a criação do Instituto do Cérebro da Universidade Católica do Rio Grande do Sul, onde se estuda o Alzheimer. Ivan Izquierdo, argentino naturalizado brasileiro, morreu esta semana, aos 83 anos, de pneumonia causada pela covid-19, mas o trabalho do neurocientista fica aí preservado para memória futura: “Ele mostrou como os organismos precisam esquecer para dar lugar a novas memórias”, afirmou ao Estado de S. Paulo o neurocientista Roberto Lent, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro. “Essa identificação de que para a memória existir é preciso esquecer e que o esquecimento não é algo ruim, mas sim muito importante, foi fundamental.” Em 52 anos de carreira, este filho de um cientista argentino de ascendência espanhola e de uma dona de casa croata publicou 620 artigos científicos em revistas internacionais e foi citado mais de 12 mil vezes. No seu estudo mais importante, Izquierdo e a sua equipa conseguiram apagar a memória de ratos através da manipulação da proteína BDNF (factor neurotrófico derivado do cérebro), levando à descoberta do mecanismo do esquecimento. No seu livro A Arte de Esquecer, explica que somos quem somos por causa das nossas memórias e que a tarefa de saber que memórias manter e quais prescindir é uma difícil, mas nobre, arte. “Esquecemos a maior parte do que aprendemos. Por exemplo, ninguém se lembra de cada um dos minutos da tarde de ontem; foram esquecidos e são irrecuperáveis”, dizia numa entrevista em 2017. Mas se não fosse assim todos acabaríamos como Funes, o personagem de Borges (o seu escritor favorito), com a cabeça ocupada com todos os minutos que já vivemos.
Uma musa feita de fragilidades
Quando a demência chegou, Tony Luciani levantou a câmara e disparou. E aquela diminuta anciã, frágil e perdida por entre os sinais da doença que lhe roubava as características que aprendera a identificar como as da sua mãe, ganhou uma nova vida, agora como musa inspiradora do filho. “Não parecia a mãe com que havia crescido”, conta o artista plástico canadiano (que trabalha sobretudo com pintura a óleo e desenho a carvão e que ganhou o primeiro prémio de pintura figurativa do Museu Europeu de Arte Moderna de Barcelona em 2019), que viu em Elia “um ser querido que parecia derrotado”. Foram quatro anos de fotos com aquela musa inspiradora até ao avanço da enfermidade pôr um ponto final nessa última aventura de mãe e filho que, de repente, haviam trocado os papéis: “A minha mãe tornou-se a minha filha e o humor tornou-se o nosso brinquedo. O divertimento fez com que tudo fosse surpreendentemente bonito.” Daí nasceu o projecto documental MAMMA: In The Meantime. “Queria documentar os seus sentimentos, pensamentos e histórias antes que tudo se esquecera e se perdera para sempre”, explicou. Ao mesmo tempo, ele próprio ganhava uma certa tranquilidade porque, ao registar as memórias da mãe, estava, de alguma forma, a preservar parte daquilo que a demência se encarregaria de apagar. “A minha mãe, agora aos 97 anos, perdeu todas as memórias da sua vida bem vivida. Esta série captura alguém que tinha tanto a dizer e que, com estas imagens, teve a oportunidade de descrever uma pequena parte disso.”
Não há banal que sempre dure
A Fundação Mapfre de Madrid inaugurou esta semana a primeira exposição em Espanha da fotógrafa japonesa Tomoko Yoneda, que tem dedicado o grosso da sua obra à memória, registando o actual quotidiano de lugares cuja história carregou de acontecimentos importantes. A maioria das suas imagens mostram cenas “bastante inócuas, nada dramáticas”, como explica o conservador da fotografia da fundação, Carlos Gollonet, citado pelo La Vanguardia. Como uma das suas fotografias mais famosas, a dos veraneantes numa das praias da Normandia onde os aliados desembarcaram a 6 de Junho de 1944 para ajudar na libertação da Europa dos nazis. “Animada desde jovem pela vocação jornalística, as suas obras costumam fazer referência a factos históricos, paisagens e interiores associados a conflitos armados com os quais quer deixar constância da presença intangível da história no transcurso quotidiano da vida”, explica por sua vez o comissário da exposição, Paul Wombell. Inspirada por Hannah Arendt e por Albert Camus – o escritor francês nascido na Argélia serviu-lhe de inspiração a uma série, a que chamou Diálogo com Albert Camus –, Tomoko Yoneda aborda “preocupações muito contemporâneas”, como as questões da memória, do colonialismo ou da guerra, mas através de “metáforas que fazem aflorar recordações nesses espaços”, explica Gollonet. Mais do que confrontar o horror da guerra, o que Tomoko Yoneda nos mostra é o banal desse espaço que foi de drama e agora nos serve de duplo confronto: o tempo tudo transforma em banal e a memória ajuda a ver o mal que se esconde na banalidade.
Salvar a vida lenta da reciclagem
A história é contada pelo New York Times. Quando um trabalhador de um centro de reciclagem de Limerick, capital das Shetland, arquipélago mais a Norte da Escócia, espreitou os dois sacos cheios de slides que ali haviam deixado para destruir, percebeu que neles se continha algo com valor para resgatar e preservar. Essas imagens do quotidiano dos ilhéus nos anos 1960 e 1970 guardavam visualmente a memória de um tempo e eram, nas palavras de Paul Moar, trabalhador de reciclagem e historiador amador, “um pequeno tesouro”. Com autorização do velhote, Nick Dymond, que as levara nos sacos e era o autor das fotos, digitalizou as 300 imagens e partilhou dezenas delas na internet. Rapidamente se tornaram um sucesso entre os 23 mil habitantes do arquipélago que foram ajudando a compor o quadro com recordações dos indivíduos e lugares retratados. “Penso que trouxe às pessoas um pequeno raio de luz num tempo de obscuridade”, disse Moar. “Tem sido encantador, não só salvar as fotos como ver as pessoas a apreciá-las tanto.” A Dymond, de 77 anos, a grande atracção que as suas fotos suscitaram surpreendeu-o. Para ele, haviam-se tornado inúteis – sem aparelho para ver os slides e guardadas há 30 anos em três caixas que atravancavam a pequena casa onde vive, desfazer-se delas tornara-se decisão natural. Quando se levantarem as restrições devido à pandemia, Moar conta doar o espólio devidamente digitalizado ao Shetland Museum and Archives porque “estas fotos antigas são uma janela para um tempo em que a vida era, dizem as pessoas, mais real e tangível”. Simplesmente, uma memória de quando a “vida era mais lenta”.