A armadilha de planear a ciência
O que há de errado na nossa economia não resulta da política científica. Pelo contrário. Os sectores que mais se modernizaram devem-no, em boa parte, à articulação que fizeram com os centros de investigação.
Em 2020 a ciência brilhou. A história do desenvolvimento rápido das vacinas para a prevenção do vírus da covid-19 oferece-nos uma oportunidade de reflexão. De forma sintética, podemos dizer que o êxito das vacinas não se explica nem por milagre nem por planeamento da ciência. A história da vacina não tem agendas em que estão previamente definidos os temas e as instituições que vão ser financiadas.
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Em 2020 a ciência brilhou. A história do desenvolvimento rápido das vacinas para a prevenção do vírus da covid-19 oferece-nos uma oportunidade de reflexão. De forma sintética, podemos dizer que o êxito das vacinas não se explica nem por milagre nem por planeamento da ciência. A história da vacina não tem agendas em que estão previamente definidos os temas e as instituições que vão ser financiadas.
Tem, antes, investimento em ciência prolongado no tempo (num primeiro momento) e mobilização de investigadores e de conhecimento científico transformando um problema em oportunidade de aplicação de conhecimento (num segundo momento). Tem política pública de ciência, tem política pública de inovação e tem política pública económica, concretizadas de forma articulada, mas independente.
Em Portugal, até 1995, a ciência enfrentou dificuldades de desenvolvimento sustentado porque começou por estar subordinada às lógicas da economia, do planeamento e da definição centralizada de prioridades. O tempo da autonomia das políticas públicas de ciência, e do desenvolvimento acelerado desta, iniciou-se em 1995, em resultado da ação de Mariano Gago, concretizando os princípios enunciados cinco anos antes com a publicação do “Manifesto para a Ciência em Portugal”. O seu grande mérito foi dizer: à economia o que é da economia, à ciência o que é da ciência. E convencer António Guterres de que, para desenvolver o sistema científico em Portugal, era necessário definir uma política pública com instrumentos financeiros e organismos próprios que se ocupassem desse desígnio. Instituiu-se, então, um quadro estável de instituições, linhas e programas de financiamento numa base competitiva, regular e previsível, transparente e legível.
Desde 2011 que esta clareza tem vindo a ser perdida. Paira um nevoeiro, uma cortina de opacidade, sobre os circuitos, as instituições, os instrumentos de financiamento e os processos de avaliação, que impede a legibilidade de todo o sistema, que está hoje mais burocrático, mais sinuoso e cheio de atalhos improváveis. Paradigmático desta situação é ter deixado de existir, no Portugal 2020, um programa para a Ciência, repartindo-se as responsabilidades de avaliação e financiamento da ciência pelos programas da economia, do território e do planeamento. Nesta regressão houve uma orientação subjacente, não explícita: o país não pode continuar a investir em ciência que não implique melhorar a economia.
A partir de 2015, quase nada foi revertido. E, agora, quando já se conhece o desenho do Portugal 2030 e do Programa de Recuperação e Resiliência, percebe-se que tudo poderá ficar pior. Apesar de se manter um Ministério da Ciência e do Ensino Superior, a política de ciência propriamente dita está reduzida à promoção do emprego científico e da formação avançada. A maioria dos apoios à internacionalização, ao financiamento de projetos e atividades de investigação, ao financiamento das infraestruturas científicas e tecnológicas estão subordinados às lógicas da política económica e do planeamento, às exigências de aplicação e de utilidade, à ilusão de que é possível aplicar conhecimento sem que ele seja antes produzido.
Quando se analisam as orientações programáticas para os fundos estruturais percebe-se que se escolheu canalizar os recursos da ciência para objetivos de natureza económica. Ou, numa formulação equivalente, que os investimentos em ciência devem depender da sua utilidade económica imediata. Tal subordinação matará a ciência e não garantirá a modernização da economia.
Proclamar que já chega de conhecimento e que agora é apenas necessário aplicá-lo à economia ou ao desenvolvimento de tecnologias é um erro. Melhor: é uma forma de transferir recursos financeiros para algumas empresas. Não podemos é chamar política de ciência a esta transferência.
Gostava de terminar dizendo o seguinte. O que há de errado ou insuficiente na nossa economia não resulta da política científica ou da forma como se desenvolve a atividade científica em Portugal. Pelo contrário. Os sectores da economia que mais se modernizaram devem-no, em boa parte, à articulação que souberam estabelecer com os centros de investigação, as universidades e os politécnicos. A pergunta certa a fazer é, pois, a seguinte: o que devemos ou podemos fazer, que politicas públicas devemos prosseguir, para tornar mais aplicável o conhecimento e a ciência que os cientistas produzem em Portugal? O que devemos adicionar ao investimento em ciência para descobrir a aplicação dos conhecimentos científicos e melhorar a sua apropriação pelos agentes económicos? O que fazem os outros países? Que bons exemplos existem em Portugal que nos podem inspirar?
A autora escreve segundo o novo acordo ortográfico