Há “um grande número de investigadoras”, mas poucas chegam ao topo — porquê?
O Dia Internacional das Mulheres e Raparigas na Ciência assinala-se esta quinta-feira. Três investigadoras do Centro Comum de Investigação da Comissão Europeia organizam um webinar porque é importante mostrar “a ciência que se faz em Portugal” por mulheres. A presidente da FCT, Helena Pereira, participa no evento.
Já lá vão umas décadas, mas a memória não foge a Helena Pereira. Ao longo dos anos passados no liceu, encontrou as duas maiores referências da sua formação: duas professoras, ambas com o mesmo nome. A professora Margarida Medina, de Ciências Naturais, “era um símbolo de investigação, de transmissão de ensino, desse gosto e curiosidade por investigar”. Já a professora Margarida Sarmento, de Matemática, conseguia que os alunos compreendessem “os conceitos básicos das coisas” facilmente. A presidente da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT) não sabia, na altura, que as havia de ver hoje como “modelos” a seguir para construir o seu percurso académico.
Ter modelos femininos, especialmente na ciência, não é assim tão comum. “As meninas não encontram ou não têm modelos”, diz Sandra Caldeira, investigadora na área da Saúde Pública, a partir de Ispra, Itália. E é por isso que “é importante ter mulheres na ciência”, porque “se calhar, há um problema de representatividade que já vem de trás”. Esse é um dos motivos que, diz, evidencia a importância de celebrar o Dia Internacional das Mulheres e Raparigas na Ciência, que se assinala esta quinta-feira, 11 de Fevereiro. Com Sofia Leite (da mesma área científica) e Rita Araújo, que se dedica à investigação de recursos marinhos, Sandra Caldeira organizou um webinar sobre o tema, que decorre ao início da tarde.
O evento integra-se na presidência portuguesa do Conselho da União Europeia e faz parte dos muitos que ainda estão para vir, ver e ouvir. Para este “em específico”, as três portuguesas, a trabalhar no Centro Comum de Investigação da Comissão Europeia naquela comuna italiana, querem fazer ver “a ciência que se faz em Portugal” por mulheres, explica Sofia Leite. O webinar, que se realiza com a cooperação da Gulbenkian, tem início às 12h30 com as boas-vindas da investigadora. Cinco minutos depois, será a vez de a presidente da FCT questionar se o género é um factor na produção de ciência no acesso a fundos de investigação em Portugal. Helena Pereira deixou parte da resposta ao P3, mas já lá vamos.
Depois da intervenção da presidente da FCT, segue-se um painel com três cientistas. Maria João Amorim, do Instituto Gulbenkian da Ciência, falará sobre “como os vírus moldam as sociedades”; já Raquel Oliveira, do mesmo instituto, debruçar-se-á sobre “a dança dos cromossomas”, inserindo “os desafios dos cromossomas XX” na conversa; por último, Ana João Rodrigues, do Instituto de Investigação em Ciências da Vida e Saúde da Universidade do Minho, falará sobre “recompensa e aversão”, numa viagem dos neurónios aos circuitos de comportamento. Às 13h15 abre-se uma mesa redonda em que as perspectivas dos homens são bem-vindas. Por fim, às 13h55, Raquel Gaspar, da Ocean Alive, lança uma exibição online sobre a protecção dos oceanos e a contribuição da sabedoria das mulheres nesse sentido. Todos os oradores falarão em inglês.
Falta de modelos femininos nas STEM pode condicionar futuro
Quando se pensa “na realização da investigação propriamente dita”, Portugal está, comparando-se a outros países, “numa posição relativamente vantajosa”. “Temos um grande número de mulheres investigadoras”, diz Helena Pereira. Contudo, há um problema: “Estes números escondem uma realidade. Se pensarmos em funções de coordenação, responsabilidade ou pertença a grupos de decisão, aí a posição inverte-se e a proporção de mulheres nesses cargos diminui.” Em que sentido? “Há este efeito de género, que se traduz em, genericamente, as mulheres cientistas e peritas serem menos chamadas para comités de atribuições de financiamentos, comissões de peritos para investimento ou para apoio de decisões políticas”, responde a presidente da FCT.
Há números que o comprovam. De acordo com o She Figures, um relatório da Comissão Europeia, a percentagem de mulheres na população portuguesa doutorada é de 53,5%. O mesmo documento salienta que há uma “presença de estereótipos”, particularmente forte no campo das ciências, tecnologias, engenharias e matemática (STEM, siga em inglês para Science, Technology, Engineering and Mathematics): as mulheres continuam “sub-representadas em todos os níveis, de estudantes (…) aos cargos académicos”. Para além disso, “as mulheres ainda são uma minoria” nesses postos, lê-se.
Um estudo da Microsoft, que contou com a participação de 11.500 mulheres com idades entre os 11 e os 30 anos, de 12 países europeus, também traçou algumas conclusões que vão ao encontro das preocupações das investigadoras. Num resumo, a empresa explicou que a maior parte das raparigas “ficou interessada nas STEM aos 11 anos e meio”, mas esse interesse decresceu por volta dos 15 anos. Para além “da falta de modelos femininos” na área (“uma das principais razões para não terem seguido uma carreira no sector”), 60% das inquiridas admitiram sentir mais confiança em seguir uma carreira na área, caso soubessem que homens e mulheres “trabalhavam igualmente nestas profissões”.
Essa desigualdade espelha-se, por exemplo, na presença de especialistas, cientistas ou médicos que vemos nas nossas televisões — especialmente ao longo da pandemia. “Se reparar, são muito menos as mulheres chamadas. Temos uma ministra da Saúde e uma directora-geral da Saúde, sim, mas quando vemos o chamamento de médicos, directores de hospitais, administradores, é quase tudo homens”, salienta. O mesmo desequilíbrio fez-se notar “na noite de acompanhamento das eleições presidenciais”, lembra Sandra Caldeira. A investigadora faz ainda realçar que, nos meios de comunicação social, as cientistas são chamadas com menos frequência: “Os jornalistas devem garantir essa representatividade.”
Dos brinquedos à “carga doméstica”
Rita Araújo salienta, porém, que esta realidade começa a formar-se logo a partir da infância: “Parte da educação. É tudo muito orientado para a diferença de género: os brinquedos de meninos remetem mais para algumas partes ligadas à engenharia, por exemplo, e isso promove esse interesse.” Sofia Leite recorda mesmo um estudo em que “as crianças tinham de desenhar cientistas”. O resultado? “A tendência era desenhar cientistas homens, principalmente a partir dos grandes nomes de que se fala. Se repararmos, a percentagem de prémios Nobel femininos em ciência é de 3%. Tudo vai entrando pelas orelhas das crianças.”
Outros factores contribuem para que exista uma espécie “tecto” que trava a progressão das mulheres na área da investigação científica — na verdade, acontece um pouco por todo o lado, “noutras áreas” também. Helena Pereira teve uma “situação familiar favorável” que lhe permitiu “desenvolver uma actividade [científica] grande” na área da Agronomia, que ainda dá frutos: é professora catedrática do Instituto Superior de Agronomia da Universidade de Lisboa desde 1993 e já foi vice-reitora e reitora da Universidade Técnica de Lisboa, tendo antes desempenhado o cargo de pró-reitora na Universidade do Algarve, entre 1989 e 1992. Ao longo de todos estes anos no ensino superior, diz ter assistido “à entrada de um número de maior de mulheres no ensino superior” e que, consequentemente, “seguiram o caminho da investigação”. Reconhece, contudo, que “na maioria dos casos não é assim”.
No que toca à sua carreira, Rita Araújo diz não sentir “discriminação no dia-a-dia”. Mas sente as limitações que a presidente da FCT aponta: “Ser mulher na ciência e ter responsabilidades em casa que não são igualmente divididas tem um peso muito grande na minha produtividade e capacidade de fazer ciência. Há um esforço maior e a disponibilidade não é a mesma.” O mesmo acontece com Sandra Caldeira. Já Sofia Leite observa que, apesar de tudo, existe uma maior consciencialização por parte da sociedade para equilibrar essa balança. “Começa a haver mais condições. Aqui [no seu local de trabalho] há uma creche e apoios para crianças. Isso reflecte-se na disponibilidade e facilita as coisas”, conta.
As três investigadoras têm como certo que “a diversidade traz resultados melhores”. Por isso, é bom saber que “não é o género que determina o sucesso naquilo que se faz”, frisa Helena Pereira. Daí que seja “importante ver que as mulheres, tal como os homens, podem investigar em diferentes áreas e ter resultados excelentes” – porque, no final de contas, e como diz a presidente da FCT, “investigar é uma coisa fantástica”.