O Avesso da Canção: o direito da vida
Ouço o podcast O Avesso da Canção, da Luísa Sobral, como se de uma canção se tratasse. Não são conversas herméticas para músico ouvir. Fala-se da alegria em ajudar as canções a ganhar vida própria e do interesse que há em dedicar a vida à arte de não as atrapalhar nesse surgimento.
A criação de uma canção é, para mim, um dos fenómenos mais fascinantes que há. É tão inexplicável e insondável, tem tanto de misterioso e de místico, que nem sei se se pode chamar criação, mas tenho a certeza que se pode chamar fenómeno. Desde que me conheço que sou obcecado por música, mas, mais do que abrir os livros que vêm com os discos ou o Google para descobrir quem é o vocalista ou quem toca guitarra nas canções de que gosto, sempre quis saber quem são os compositores e os letristas que as fizeram nascer. Eu, que há anos ocupo quase todo o meu tempo livre a tentar compor canções, adoro conhecer o processo criativo dos compositores que admiro, saber onde é que apanharam as melodias, porque é que a letra tem certas palavras e não outras. É por isso que ouço o podcast O Avesso da Canção, da Luísa Sobral, como se de uma canção se tratasse, atento ao conteúdo e saboreando a forma.
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A criação de uma canção é, para mim, um dos fenómenos mais fascinantes que há. É tão inexplicável e insondável, tem tanto de misterioso e de místico, que nem sei se se pode chamar criação, mas tenho a certeza que se pode chamar fenómeno. Desde que me conheço que sou obcecado por música, mas, mais do que abrir os livros que vêm com os discos ou o Google para descobrir quem é o vocalista ou quem toca guitarra nas canções de que gosto, sempre quis saber quem são os compositores e os letristas que as fizeram nascer. Eu, que há anos ocupo quase todo o meu tempo livre a tentar compor canções, adoro conhecer o processo criativo dos compositores que admiro, saber onde é que apanharam as melodias, porque é que a letra tem certas palavras e não outras. É por isso que ouço o podcast O Avesso da Canção, da Luísa Sobral, como se de uma canção se tratasse, atento ao conteúdo e saboreando a forma.
Mesmo quem nunca tentou compor uma canção já terá perdido algum tempo, depois de ouvir uma canção de que goste, a pensar como é que ela surgiu. Mesmo quem nem sequer sabe o que é uma clave de sol fica fascinado quando descobre que o Paul McCartney compôs o Yesterday num sonho e acordou a cantar scrambled eggs com aquela exacta melodia. Ou que o Paul Simon pede ao taxista para arrancar e andar sem destino, como se a procura pelas palavras fosse uma perseguição policial pelas ruas de Nova Iorque como se vê nos filmes.
Para mim, o sítio onde estas duas histórias se encontram é o sítio de onde vêm as canções. Um sítio onde a melodia aparece como um pardal num banco de jardim. É preciso estar atento para não o perder e ser cauteloso para não o espantar, porque num suspiro ele bate as asas e vai pousar no banco de jardim onde está sentada outra pessoa qualquer. Não podemos garantir que volte, por isso temos de ter a certeza que, como dizia Picasso, nos apanhe a trabalhar. Um sítio onde a letra é muito mais tímida e recatada, ao ponto de ser preciso ir à procura dela de táxi, num dia bom, ou montanha acima. Faz-se o que é preciso para levantar o tapete da melodia e descobrir as palavras que estão lá debaixo. Tem de ser aquela letra para aquela melodia e vice-versa, porque ambas rejeitam o que lhes parecer de outra canção. Sabem que o trabalho do músico é convencê-las a fingir que são coisas separadas, um poema inspirado e uma melodia harmoniosa, quando estão fartas de saber que, se só funcionam juntas, só podem ter nascido juntas.
É por partir desse tal sítio que o podcast da Luísa Sobral é tão espectacular. Fala-se do que fez aqueles compositores começarem a reparar nos pardais, do medo que têm de ficar sozinhos no banco de jardim, das expedições que fazem sabe Deus onde à procura das palavras que querem para que a canção não faça cara feia. Não são conversas herméticas para músico ouvir, porque não é de anacruses e pentatónicas que a Luísa e os convidados se ocupam, mas sim da alegria em ajudar as canções a ganhar vida própria e do interesse que há em dedicar a vida à arte de não as atrapalhar nesse surgimento.
Ouvir a forma descomplicada como a Carolina Deslandes fala das canções, entender a preocupação estética com que o David Fonseca esculpe cada composição, saborear a simplicidade do Tim, saber como é que a Capicua consegue passar mensagens tão duras com palavras tão bonitas e como é que o meu mestre Miguel Araújo sem querer nos engana e faz parecer que é tudo tão fácil dá vontade de tentar fazer igual. Essa é a maior e mais importante qualidade de O Avesso da Canção.
Não é fácil, em tempos de imediatismo e soundbites, inspirar alguém a querer descobrir o avesso do que quer que seja, mas a Luísa consegue-o, consegue que queiramos conhecer o avesso das canções que nos viram do avesso, e é também por isso que o podcast dela é um segredo bem guardado que deve ser divulgado, mas merece continuar a ser bem guardado.