Há anti-semitismo em Portugal?
O decreto de expulsão de 1496, as conversões forçadas de 1497, os três séculos de Inquisição, destruíram o judaísmo português, apagaram-no da memória colectiva, mas não acabaram com o preconceito. Hoje confirmamo-lo de novo através de um homem que não entende o compromisso social a que o seu passado o deveria obrigar.
Imagino que para as pessoas que estão a ler este artigo, a resposta será eventualmente negativa. Em parte, é verdade. Até agora não se tem revelado nenhuma corrente anti-semita organizada e que se tenha abertamente manifestado em público. Mas em Portugal, contrariamente a outros países europeus, a expressão pública contra os judeus não é muito comum. E o que não se vê, é como se não existisse.
A verdade faz-nos mais fortes
Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.
Imagino que para as pessoas que estão a ler este artigo, a resposta será eventualmente negativa. Em parte, é verdade. Até agora não se tem revelado nenhuma corrente anti-semita organizada e que se tenha abertamente manifestado em público. Mas em Portugal, contrariamente a outros países europeus, a expressão pública contra os judeus não é muito comum. E o que não se vê, é como se não existisse.
Mas existe, e por estes dias acabámos de assistir a um exemplo bem claro tecendo, a propósito da dramática situação de pandemia em que vivemos, uma das muitas teorias da conspiração: se não temos vacinas, a culpa é dos judeus!
Refiro-me às palavras de um antigo e ilustre capitão de Abril, Rodrigo Sousa Castro, condecorado com a Ordem de Liberdade, e posteriormente promovido a coronel. A 6 deste mês de Fevereiro, escreveu no Twiter o seguinte: “Os judeus, como dominam a finança mundial, compraram e têm as vacinas que quiseram. É uma espécie de vingança histórica. E mais não digo antes que os bulldogs sionistas saltem.”
E como não só os “bulldogs sionistas” saltaram, como inúmeros outros ser vivos também “saltaram”, o valoroso coronel insistiu, escrevendo: “Um post em que falo do sionismo e dos seus crimes na Palestina valeu-me a fuga da minha página aqui no Tt da legião dos nazi-sionistas. Página ficou mais higienizada.”
Um dia depois, o coronel declara-se “arrasado” e confessa que errou ao falar de judeus de forma genérica, pedindo desculpa. Mas tal como actos, as palavras também não se apagam porque elas traduzem o pensamento e têm sim, inevitavelmente, as suas consequências, sobretudo quando são ditas por um homem que ostenta a Ordem da Liberdade. Quando falo em consequências não me refiro a qualquer tipo de penalizações. Refiro-me sim à descredibilização de um homem cujo passado o deveria responsabilizar pelo presente.
O 25 de Abril trouxe-nos a liberdade, a democracia e a igualdade de direitos. A Constituição confirma-o e a Lei de Liberdade Religiosa, aprovada em 2001, reconhece com clareza a igualdade perante a Lei de todas as confissões religiosas. Não são assim admissíveis generalizações que ponham em causa uma minoria no seu todo, seja ela qual for. Num país livre, as pessoas, independentemente da sua pertença étnica, religiosa, opção sexual ou outra, são responsáveis individualmente pelas suas escolhas, acções e comportamentos.
Mas sabemos que a lei é uma coisa, a realidade outra e nenhum país está imune ao anti-semitismo: a prová-lo está a profanação de 17 campas no cemitério israelita de Lisboa, com inscrições nazis em grande parte delas, na noite de 25 de Setembro de 2007. Este acto desencadeou uma forte onda de indignação por parte da sociedade civil e de autoridades oficiais. No próprio Parlamento, os actos de vandalismo foram objecto de um voto unânime de condenação.
No entanto, e apesar de os seus autores, ligados a movimentos neonazis e apanhados em flagrante, terem sido condenados em julgamento, este acto lembra-nos como a liberdade, e em particular a liberdade religiosa, é um desafio permanente. Um desafio para a manter e desenvolver, um desafio para combater os estereótipos e preconceitos seculares sustentados pela ignorância. Mesmo em Portugal, onde entre o final do século XV e o início do século XX não existiu uma presença judaica oficialmente reconhecida, o estereótipo mantém-se. O decreto de expulsão de 1496, as conversões forçadas de 1497, os três séculos de Inquisição, destruíram o judaísmo português, apagaram-no da memória colectiva, mas não acabaram com o preconceito. Hoje confirmamo-lo de novo através de um homem que não entende o compromisso social a que o seu passado o deveria obrigar.
No pós-guerra, durante meio século, a memória do Holocausto limitou ou abafou a expressão pública do anti-semitismo na Europa. Esse tempo acabou. Crescem os extremos, de direita e de esquerda, e de alguma forma também a erosão do sistema democrático tal como o conhecemos com os seus valores de integração das minorias, aceitação da diferença e igualdade de direitos. Porque é também no tratamento das minorias que se testa a qualidade de uma democracia.
O senhor coronel saberá certamente que não são os cerca de 15 milhões de judeus existentes actualmente no nosso planeta que “dominam a finança mundial”, mas talvez não saiba, nem queira saber, que entre esses 15 milhões há certamente 15 milhões de visões diferentes, atitudes diferentes, comportamentos diferentes. E provavelmente mais, porque segundo um velho provérbio judaico “Onde há dois judeus, há três opiniões e quatro partidos políticos”… Obviamente, não sabe!