Como proteger a privacidade das conversas na Net e não deixar os predadores sexuais à-vontade?
Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia empenhada em acordo sobre legislação provisória que permita equilíbrio difícil entre direito à privacidade e protecção de crianças.
Não há volta atrás. Sempre que mandar uma fotografia ou um vídeo a familiares ou amigos, através de uma plataforma digital ou uma aplicação informática, o sistema vai verificar se está a remeter material de abuso sexual de crianças. Quando trocar mensagens escritas, vai procurar sinais de aliciamento sexual de menores de idade (grooming). A questão é com que salvaguardas.
A reuniões de peritos do Parlamento Europeu e da Presidência Portuguesa sucedem-se em busca de um acordo sobre o que cada um julga ser a melhor forma de salvar o direito à privacidade das comunicações electrónicas entre particulares sem comprometer a necessidade de prevenir e combater o abuso sexual de crianças online. Os políticos devem voltar à mesa de negociações na próxima semana. A Presidência espera fechar um acordo ainda este mês.
Ninguém lhes pediu, mas há uns anos as empresas que fornecem serviços de comunicações pessoais pela Net começaram a usar tecnologia para identificar imagens e vídeos de abuso sexual e analisar textos e tráfego de dados em busca de comportamentos que configuram a prática de grooming. Fazem isto, de forma voluntária ao abrigo do regulamento de protecção de dados, mas entrando no domínio da privacidade. E remetem a informação às autoridades.
Com a entrada em vigor do Código Europeu de Comunicações Electrónicas, no dia 21 de Dezembro, os serviços de comunicação interpessoal baseados na Internet passaram a estar abrangidos pela Directiva Privacidade Electrónica, que está a ser revista. Quer isto dizer que as empresas ficaram obrigadas a respeitar a privacidade das comunicações interpessoais feitas através destas plataformas ou aplicações.
A directiva não tem qualquer referência explícita a material de abuso sexual de crianças online. Umas empresas, como a Microsoft, dona do Skype, a Google ou a LinkedIn, continuam a usar as referidas ferramentas tecnológicas na UE. Outras, como a Facebook, dona do Messenger e do Instagram, descativaram-nas.
“Não podemos deixar as coisas como estão”, reage Tito Morais, da Miúdos Seguros na Net, uma das organizações que apelaram à presidência para dar prioridade a este tema. “Isto tem repercussões brutais.” Há uma quebra acentuada no material detectado.
O desacordo
Em Setembro, a Comissão propôs uma derrogação temporária de parte de dois artigos da Directiva de Privacidade Electrónica. Uma legislação de fundo foi anunciada com a Estratégia da União Europeia para uma luta mais eficaz contra o abuso sexual de crianças, adoptada no dia 24 de Julho de 2020. Enquanto não chega essa, que responsabiliza as empresas pela detecção e denúncia de materiais de abuso sexual de crianças, apresentou uma proposta legislativa provisória.
Em Outubro, o Conselho, então presidido pela Alemanha, assumiu a posição do Comissão. Já em Dezembro, o Parlamento Europeu, seguindo o Comité do Emprego e dos Assuntos Sociais (LIBE), tomou posição distinta. Ninguém está contra a necessidade de encontrar um equilíbrio do direito à privacidade e o combate à pornografia infantil e outros crimes. Diferem na forma.
A pressão está a vir de vários lados para que o trílogo chegue a um acordo rapidamente. Ainda segunda-feira, dezenas de eurodeputados, incluindo uma portuguesa, Isabel Carvalhais (PS), assinaram uma carta aberta aos envolvidos nas negociações. “Todos os dias contam, porque cada dia sem se adoptar a prerrogativa temporária significa que inúmeras crianças ficam desprotegidas, porque as empresas de tecnologia não conseguem mais detectar os abusos online e a polícia não consegue mais salvá-las, com impunidade dos perpetradores”, lê-se.
Fontes da presidência portuguesa garantem que este tema é prioritário. Desde o dia 1 de Janeiro até ao final desta semana, contarão oito reuniões de peritos.
Os pontos da discórdia
Em causa estão três tipos de ferramentas: há as que pesquisam imagens de abuso sexual de crianças que já antes foram analisadas e classificadas pelas autoridades, as que detectam imagens suspeitas e que têm de ser verificadas por pessoas e as que identificam padrões nas próprias conversas.
O Parlamento desconfia sobretudo da tecnologia de monitorização de mensagem em busca de indícios de grooming. Aceita que seja usada para detectar padrões, não para compreender a substância do conteúdo das mensagens. Pede que essas tecnologias sejam sujeitas a autorização prévia da autoridade competente, o que o conselho entende que demoraria.
Nas negociações sobre o regulamento temporário, os representantes do Parlamento têm insistido que os dados devem ser analisados por pessoas antes de serem enviados para as autoridades. O conselho, por sua vez, tem sustentado que é impraticável submeter todas as imagens ao olhar humano.
Os negociadores do conselho batem-se pelo uso exclusivo de meios técnicos para sinalizar conteúdo potencialmente suspeito, que deve ser encaminhado para as autoridades, onde os utilizadores terão as garantias do sigilo profissional, do segredo de justiça, da presunção de inocência. A tecnologia consegue identificar quem transmitiu o conteúdo, se o utilizador já antes foi sinalizado, se o conteúdo tem alta taxa de circulação num grupo específico. Embora saibam que os “indicadores-chave” do algoritmo não oferecerem uma garantia de 100%, entendem que os fornecedores de software têm interesse em garantir que as taxas de erro sejam as mais baixas possíveis.
Outro ponto de discórdia é o prazo. O Parlamento quer que o material seja destruído no prazo de três meses. E o conselho defende que as imagens, sendo provas, devem ser preservadas até o processo ficar concluído.
“Não é fácil”, comenta Tito Morais. “Tivemos uma situação de vigilância em massa por parte do governo dos Estado Unidos, que deu origem a situações como a do Edward Snowden. Não podemos passar para uma outra em que isso seja feito por empresas de cariz tecnológico.” Parece-lhe, mesmo assim, que algo falhou no processo. “Se o tema tivesse sido tratado atempadamente, havia equilíbrio antes da entrada em vigor do código.”
A Polícia Judiciária deu conta de um aumento de sinalizações durante a crise pandémica. Carlos Cabreiro, director da Unidade Nacional de Combate ao Cibercrime e à Criminalidade Tecnológica, desdramatiza o efeito deste hiato. Algumas empresas continuaram a usar aquelas ferramentas e essa não é a única forma que as autoridades têm de chegar àquele tipo de material, mas está expectante. “Estamos a falar da adaptabilidade da legislação às necessidades da investigação, resume. “É relevante em termos preventivos e em termos de combate.”