A confusão de papéis da bastonária da Ordem dos Enfermeiros
Se se compreende que, por vezes, seja complicado despir a veste de cidadão para vestir a de bastonário, o mínimo que se exige a alguém que assuma funções de interesse público é uma conduta digna, institucional, respeitosa e responsável, junto dos seus pares, representados e sociedade civil.
“Uma bastonária, uma delegada sindical e uma líder partidária entram num bar...” A história tem, no entanto, um plot twist: as três são uma só pessoa. Num jeito de homenagem a ideais renascentistas, a protagonista faz questão de se multiplicar em diferentes papéis (sem legitimidade para tal) e insiste em comentar assuntos na praça pública como se de conversas de café se tratassem.
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“Uma bastonária, uma delegada sindical e uma líder partidária entram num bar...” A história tem, no entanto, um plot twist: as três são uma só pessoa. Num jeito de homenagem a ideais renascentistas, a protagonista faz questão de se multiplicar em diferentes papéis (sem legitimidade para tal) e insiste em comentar assuntos na praça pública como se de conversas de café se tratassem.
“Com grandes poderes, vêm grandes irresponsabilidades” — é esta a máxima possível, quando adaptada à bastonária da Ordem dos Enfermeiros, Ana Rita Cavaco, à luz dos recentes episódios, que seriam anedóticos, não fosse a gravidade das suas declarações.
A confusão entre o desempenho de papéis institucionais não é de agora e não são raros os casos de bastonários de ordens profissionais que se arrogam no direito de se fazer substituir a sindicatos e partidos, na prossecução de agendas próprias, distantes e diferentes daquelas para as quais foram legitimados. Mas de se confundir espaços e funções a insultar gratuitamente jornalistas e titulares de órgãos de poder autárquico vai um longo caminho.
Como é sabido, a eleição para um lugar de topo dentro de uma estrutura, seja ela associativa, profissional, política ou desportiva, faz nascer e, mais tarde, desenvolve um nexo de representatividade entre representantes e representados, indissociável do cargo e presente em qualquer acção ou decisão tomada. Deste modo, a toda e qualquer acção ou decisão levada a cabo pelo eleito deve estar subjacente a ideia de que se está a representar um conjunto de vozes e opiniões e, mais importante, de que só se ocupa esse lugar de destaque porque um grupo entendeu que seria capaz de desempenhar um conjunto muito específico e previamente delimitado de funções.
No caso das ordens profissionais é importante ter presente este nexo e, principalmente, relembrar o propósito com que o Estado lhes delega competências tradicionalmente suas. Estas associações privadas de interesse público foram instituídas com o grande objectivo de controlar e regular o acesso à profissão do ponto de vista legal e deontológico, não se confundindo, desde logo, com um sindicato ou partido político. Da mesma forma, uma associação que tivesse o poder regulatório e fiscalizador de uma profissão e, ao mesmo tempo, a pressão de obter e apresentar resultados negociais estaria num constante dilema entre a defesa dos interesses dos associados e a defesa do interesse público.
Questiono, assim, se o papel de bastonária de uma ordem profissional se coaduna com o plano de acção de Ana Rita Cavaco. Duvido que os enfermeiros a tenham mandatado para, aproveitando a visibilidade mediática inerente ao cargo que desempenha, 1) fazer jogos políticos com questões que extravasam as suas competências; 2) em plena pandemia, ir cumprimentar um líder de um partido político, num congresso em que este vai a sufrágio (que, curiosamente, defende o fim do Serviço Nacional de Saúde); 3) através das redes sociais, insultar de forma inqualificável o jornalista Daniel Oliveira, classificando-o como “esterco” e “enviando cumprimentos” ao seu falecido pai, e à Presidente da Câmara Municipal de Portimão, Isilda Gomes.
Se se compreende que, por vezes, seja complicado despir a veste de cidadão para vestir a de bastonário (ou uma outra qualquer de poder), o mínimo que se exige a alguém que assuma funções de interesse público é uma conduta digna, institucional, respeitosa e responsável, junto dos seus pares, representados e sociedade civil. Aos enfermeiros cabe, agora, decidir o seu futuro, sendo que há um caminho claro de dignificação da profissão: a instauração de um processo disciplinar e a emissão de um “guia de marcha” a esta bastonária que é tudo, menos isso.