Pode um tiro na cabeça de Mya inspirar a resistência ao golpe militar na Birmânia?

Um médico diz que Mya Thwate Thwate Khaing, de 19 anos, perdeu parte significativa das funções cerebrais e dificilmente sobreviverá. Tinha votado pela primeira vez nas eleições de Novembro, o pretexto dos militares para tomarem o poder.

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A faixa com a imagem de Mya Thwate Thwate Khaing depois de ter sido atingida Reuters

Mya Thwate Thwate Khaing devia celebrar o seu 20.º aniversário na quinta-feira. Em vez disso, está a lutar pela vida num hospital da capital da Birmânia, Naypyidaw, depois de ter sido atingida a tiro na cabeça quando a polícia reprimiu um protesto contra o golpe militar.

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Mya Thwate Thwate Khaing devia celebrar o seu 20.º aniversário na quinta-feira. Em vez disso, está a lutar pela vida num hospital da capital da Birmânia, Naypyidaw, depois de ter sido atingida a tiro na cabeça quando a polícia reprimiu um protesto contra o golpe militar.

O Exército birmanês tomou o poder no dia 1 de Fevereiro e deteve a líder eleita Aung San Suu Syi, pondo fim a uma longa transição para a democracia e levando dezenas e dezenas de milhares de manifestantes a sair à rua.

As notícias sobre os ferimentos da adolescente – a primeira vítima grave conhecida desde o início dos protestos – geraram raiva em todo o país e aumentaram o apoio ao movimento contra o golpe. Muitos dos seus membros fazem parte da Geração Z que se recusa a permitir que outra geração viva sob um governo militar.

Mya Thwate Thwate Khaing, de 19 anos, trabalha numa mercearia. Viajou com as irmãs da vila onde vivem nos arredores de Naypyidaw para a capital erguida pelos militares, no centro do país, para um protesto na terça-feira. A manifestação foi uma de entre dezenas em cidades e vilas por todo o país.

A polícia esmagou o protesto pacífico com canhões de água e disparos. A adolescente foi atingida na parte de trás da cabeça e os médicos não esperam que sobreviva.

O seu irmão Ye Htut Aung disse à Reuters que a família – apesar de apoiar os protestos – tinha tentado que ela não viajasse até à capital para a manifestação, com medo da violência. Ela insistiu. “Ela era assim”, diz o irmão, ao telefone. “Queria ir e eu não pude impedi-la.”

A última vez que falaram foi numa chamada telefónica com problemas de rede. Nenhum dos dois conseguiu fazer funcionar o vídeo – a nova Junta Militar tem feito de tudo para bloquear o acesso de Internet. Ye Htut Aung avisou-a para ficar atrás dos manifestantes e disse-lhe que não podia confiar na polícia.

“O que é que vais fazer se eles dispararem?”, perguntou-lhe. “Não, eles não vão fazer isso”, respondeu. “Está tudo OK. Mesmo que disparem vai correr bem.”

A Unidade de Informação de Notícias Verdadeiras do Exército diz num comunicado que as forças de segurança só usaram armas não letais e a polícia está a investigar as denúncias. Disse ainda que dois polícias foram feridos pelos “agitadores” e estão no hospital.

Os disparos causaram indignação por todo o país, relembrando a longa história de repressões sangrentas de protestos na Birmânia. Milhares de pessoas foram mortas durante levantamentos contra a anterior Junta Militar no final dos anos 1980.

Esta quarta-feira, manifestantes penduraram uma faixa com uma fotografia de Mya Thwate Thwate Khaing, logo depois de ter sido atingida, numa ponte no centro de Rangum, a capital comercial e a maior cidade do país. “Vamos opor-nos juntos ao ditador que mata pessoas”, lê-se na faixa.

"Pensei que tivesse desmaiado"

Imagens de vídeo divulgadas no Facebook e verificadas pela Reuters mostram o momento em que foi ferida. No vídeo, ela aparece na frente da multidão de manifestantes que está diante da polícia antimotim. Com uma T-shirt vermelha e um capacete começa por ser atingida por um jacto disparado por um canhão de água. Uma mulher atrás dela dá-lhe a mão e tenta levá-la dali. Quando estão de costas, ouve-se um estrondo e ela cai no chão. A polícia continua a disparar jactos de água enquanto outros tentam acudir-lhe.

“Primeiro não pensei que tivesse sido alvejada, pensei que estivesse desmaiado porque estava zangada”, diz a irmã, Mya Tha Toe Nwe, que estava lá. Em lágrimas, conta que Mya Thwate Thwate Khaing é a mais nova de quatro irmãos. “Estou de coração partido”, disse aos jornalistas. “Nós só temos mãe, o nosso pai já morreu… A minha mãe não aguenta que a sua filha esteja a morrer assim.”

Um médico do hospital disse à Reuters que a jovem perdeu uma parte significativa das funções cerebrais e dificilmente sobreviverá. De acordo com a Human Rights Watch, um homem de 20 anos também ferido por balas está estável.

Ye Htut Aung diz que o Exército tentou transferir a irmã para um hospital militar mas a família recusou. Todos são apoiantes da Liga Nacional para a Democracia (NDL) e votaram no partido nas eleições de 8 de Novembro, que a formação de Suu Kyi venceu com maioria absoluta. Sem provas, os militares dizem que a eleição foi fraudulenta para justificar terem assumido o poder.

Mya Thwate Thwate Khaing votou pela primeira vez em Novembro, conta o irmão.

Como muitos dos que estão na linha da frente dos protestos na Birmânia, também ela é uma adolescente que até terça-feira tinha toda a vida diante de si.

Em fotos publicadas no Facebook, surge no que parece ser uma floresta ou jardim vestida com uma camisola cor-de-rosa com um urso de desenhos animados estampado, o cabelo comprido penteado para trás.

Desde que as notícias do seu ferimento se espalharam, a sua página no Facebook tem sido inundada de comentários de apoio. “Lutando, irmã”, lê-se num deles.