Os perigos da cabotagem
Todos temos, com incredulidade, acompanhado medidas erráticas, contraditórias, tomadas a um ritmo diário, por um Governo atordoado. Os últimos meses foram um compêndio de como não governar em tempos de crise.
Que Portugal atravessa um momento difícil, não é novidade para ninguém.
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Que Portugal atravessa um momento difícil, não é novidade para ninguém.
Desde o Natal que o número de internados e vítimas da pandemia da covid-19 não pára de crescer. O mês de janeiro de 2021 ficará na memória como um dos mais mortíferos da nossa história recente. Depois dos incêndios de 2017, em que tantos perderam a vida e haveres, vivemos um novo trauma coletivo, feito de vida perdidas – para a covid-19, para doenças, entretanto não tratadas ou sequer diagnosticadas, para o desemprego e a desolação.
Muito deste legado não seria evitável. Mas a responsabilidade política existe e tem de ser exigida pelo outro tanto que poderia ter sido evitado. Confiamos aos políticos o poder de decisão, em troca do poder de os podermos responsabilizar pelas decisões tomadas. Um país envelhecido e pobre é um país estruturalmente vulnerável aos piores efeitos da covid-19. Perante isto – e perante o tempo que nos foi dado pelo falso “milagre” da primeira vaga – três coisas seriam de esperar: antecipação, planeamento e capacidade de resposta. Em todas elas, o Governo falhou.
No Natal, receou-se a impopularidade mais do que as curvas da covid-19. Em janeiro, quando estas disparavam, o Governo, vítima da sua própria popularidade e do governar fácil que ela dá, procrastinava. Exigiam-se medidas rápidas e arrojadas – e tudo o que tivemos foi irresolução. Quando a decisão de agravar o confinamento foi tomada, às costas de uma opinião pública que concluíra da sua razoabilidade antes do Governo, este socorreu-se da “variante” inglesa para desculpar a indecisão. Rapidamente, porém, a verdadeira razão da indecisão era notória: pouco ou nada tinha sido planeado, pouco ou nada tinha sido feito, dos acordos com os privados e capacitação de escolas e alunos para o ensino online. A falta de planeamento e coordenação no combate à covid-19 deu-nos um título, não de melhores do mundo como tanto gostam de celebrar, mas de pior país em todos os principais indicadores – um país descontrolado, a mendigar ajuda externa, a acumular corpos nas morgues dos hospitais. A voz da razão, de profissionais no olho do furacão, incluindo médicos intensivistas dos principais hospitais do país, contrastava – e contrasta – com a desorientação do Governo.
Hoje, não há praticamente ninguém que não tenha sido, direta ou indiretamente, afetado por uma falta de visão que poderia ter resultado apenas nisto: desorientação e total desgoverno. Todos conhecemos alguém que foi infetado, ficou internado ou acabou por morrer com covid-19. Todos conhecemos lojas, restaurantes e cafés que fecharam ou estão em vias de fechar. Todos conhecemos alguém que perdeu o emprego ou receia perdê-lo. Todos conhecemos crianças para quem o ensino online é uma impossibilidade – sem conforto em casa, comida na barriga, um computador ou pais que possam ajudar, o ensino online é, para muitos, uma mão cheia de nada. Todos temos, com incredulidade, acompanhado medidas erráticas, contraditórias, tomadas a um ritmo diário, por um Governo atordoado. Agora, sim, é por de mais visível que o país precisa mesmo de um milagre para lidar com a covid-19 e suas sequelas sociais e económicas.
Os últimos meses foram um compêndio de como não governar em tempos de crise.
De um governo numa situação de emergência espera-se um módico de normalidade, não uma fonte constante de instabilidade. De governantes a braços com um vírus altamente transmissível e, para muitos, letal, esperam-se soluções pragmáticas, não intransigências ideológicas. De um primeiro-ministro responsável por coordenar as políticas de combate à pandemia e cuidar do relançamento da economia espera-se uma visão estratégica, de preferência sustentada por factos, não uma navegação de cabotagem, culpando a ciência pela indecisão. Quando se confunde o essencial e urgente com o acessório e dispensável, quando se tenta mascarar a falta de planeamento com mentiras e diversões, perde-se o mais importante para um governo democrático – confiança fundada em escrutínio.
A questão que os portugueses se perguntam por estes dias é uma e premente: o que pode este Governo fazer quando chegar a hora de planear e coordenar as políticas de relançamento da economia? Que força tem este Governo para resistir a grupos de interesse instalados, a redes clientelares, ao chico-espertismo, à inércia administrativa ou ao presentismo que hipoteca o país? Ou não vivemos nós num país em que todo o jovem com ambição quer... emigrar?
A sensação que fica, depois destes meses de desgoverno, é a de que o rei vai nu. Mais grave ainda, confrontamo-nos com um vazio de poder. Quem trabalha diariamente nos hospitais não sabe ao certo com o que contar da tutela; afinal, é para defender o SNS contra os privados, como Marta Temido perorou desde o início da pandemia, ou é para colaborar com os privados, como disse há dias? Quem trabalha numa escola não sabe quando poderá voltar a ensinar presencialmente, se o online pode funcionar, ou sequer se pode confiar na palavra de um ministro que hoje diz uma coisa e amanhã o seu contrário. Quem trabalha num tribunal já só espera que seja anunciado o nome do próximo titular da pasta; até lá, todas as medidas de fundo estão adiadas sine die. Quem trabalha no setor privado e social, ou simplesmente tem uma casa para arrendar, desespera por saber com o que pode contar, já no próximo mês.
Por estes dias, há quem veja neste momento difícil do país o fim de Costa. Mas Costa está para ficar. Não tem vontade de sair, não tem quem o substitua.
E, no entanto, se quisermos falar de futuro – se quisermos ter futuro – precisamos desesperadamente de novas ideias, com novos rostos. Caso contrário, a estagnação das últimas duas décadas arrisca-se a prolongar-se indefinidamente. Mais do mesmo não serve. Trouxe-nos aqui: à cauda da Europa. Pobres e assustadoramente desiguais. Metidos num fosso que só não explode por medo e apatia – a apatia de quem já não consegue ver futuro.
É urgente encetar um caminho de recuperação da economia sem zigue-zagues. Com um rumo claro. Que ajuda quem quer fazer. Que desobstrui. Que emancipa uma sociedade assustada. A covid-19, com os seus custos humanos, sociais e económicos, é um vírus parasitário de um corpo a que há muito falta saúde. Será que estamos condenados a uma estagnação sem fim à vista? Um país que tudo o que tem para oferecer é uma pensão miserável, um emprego mal pago ou um bilhete de avião para outras paragens?
Se deixarmos correr, teremos, com alguma sorte, saúde e dinheiro para gastos, e a renúncia de quem, para não se maçar, assobia para o lado.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico