O elogio do local
Nos últimos sete anos, em que exerci funções municipais em Viseu, não conheci ninguém tão dedicado à sua comunidade – e, de forma inversamente proporcional, tão pouco recompensado –, como alguns dos presidentes de junta de freguesia.
Recordo-me da estranheza de que fui assaltado quando, pela primeira vez, li associado o meu nome à qualidade de “autarca”. Um certo desconforto tomou conta de mim como uma espécie de culpa a priori, ressuscitando lamentáveis fantasmas de almanaque.
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Recordo-me da estranheza de que fui assaltado quando, pela primeira vez, li associado o meu nome à qualidade de “autarca”. Um certo desconforto tomou conta de mim como uma espécie de culpa a priori, ressuscitando lamentáveis fantasmas de almanaque.
Este episódio diz muito sobre a urgência de reabilitar a respeitabilidade pública do “Poder Local”, a quem o anedotário nacional (e não só) dedicou tão injustamente algumas das suas pérolas. Nos últimos sete anos, em que exerci funções municipais em Viseu, não conheci ninguém tão dedicado à sua comunidade – e, de forma inversamente proporcional, tão pouco recompensado – como alguns dos presidentes de junta de freguesia.
Essa experiência alterou a minha perceção sobre o lugar insubstituível da intervenção local, sobretudo quando as suas virtualidades – muito para além das “políticas de betão” – são interpretadas.
A capacidade de empreender localmente, e de transformar culturalmente um território, é definida por um “tempo curto”, entre o plano da vontade e o da concretização, por oposição ao “tempo longo” das “grandes reformas”, regra geral demasiado tardias. Não se trata apenas do “poder de fazer”, mas também do “poder de inspirar”. A “proximidade” é uma força insubstituível.
Não devo esquecer de como pequenos gestos no plano local – uma escuta ativa, o exercício da confiança ou a boa-vontade de reunir as pessoas certas – permitiram mudanças e “desenvolvimentos” de carne-e-osso. Na Cultura e no Património, na transformação turística da cidade, mas também na luta contra os efeitos económicos e sociais devastadores desta pandemia.
Pequenos gestos que explicam como uma “incubadora” vazia se converteu num viveiro de atividades artísticas, num centro histórico despovoado; como uma loja devoluta permitiu criar a primeira empresa de “touring cultural”, num destino a despertar; como se desencravou a ambição de um “museu de história da cidade” adiado 40 anos; como uma palavra de incentivo consequente suscitou a reabilitação de património tradicional – da oficina do último ferreiro de Paraduça à secular azenha do lagar da Cepeda; como, num acordo inédito entre os tantas vezes desavindos “Poder Local” e “Estado Central”, se instituiu um “polo arqueológico”, com reservas de achados encerrados durante décadas, numa cidade sem serviço público de arqueologia; ou como a coleção e espólio de um dos grandes nomes da arte contemporânea portuguesa, José Mouga, serão salvaguardados e valorizados, dando vocação irreversível a um “centro de arte contemporânea”.
Hoje, somos encandeados por ideias que, à força da sua repetição, se assemelham a penosos lugares comuns. Entre elas, a sentença da crise inexorável do local e da sua substituição imperativa por escalas de “dimensão crítica”. Temos sido empurrados à exaustão para a convicção de que o futuro já não passa por aqui, mas por “redes” e “economias de aglomeração”.
Os “minifúndios” podem ser curtos nos seus efeitos, mas a “massa crítica” e as “economias de escala” não se geram espontaneamente. É do plano local que, como sua raiz, elas emergem e se alimentam.
Diminuir ou desvalorizar o lugar específico da intervenção local não seria apenas um ato injusto, como também profundamente perdulário. Não nos podemos permitir deitar fora o bebé com a água do banho.
Dedico este texto à comunidade de mulheres da aldeia-milagre de Várzea de Calde, cujo amor à tradição milenar do linho tanto me inspirou, e ao presidente da junta local, José Fernandes, exemplo de dedicação abnegada à sua terra.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico