A covid-19 matou três vezes mais russos em 2020 do que o Governo reportou
Números revelados pela agência de estatística federal russa apontam para um impacto muito mais grave da pandemia. Rússia passa a ser o quarto país do mundo com mais mortes.
O número de mortes associadas à covid-19 na Rússia durante o ano passado foi quase o triplo daquele que o Governo divulgou inicialmente. Os dados revelados pela agência federal de estatística confirmam a desconfiança que as estatísticas apresentadas pelo Kremlin despertaram nos últimos meses.
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O número de mortes associadas à covid-19 na Rússia durante o ano passado foi quase o triplo daquele que o Governo divulgou inicialmente. Os dados revelados pela agência federal de estatística confirmam a desconfiança que as estatísticas apresentadas pelo Kremlin despertaram nos últimos meses.
Em 2020, morreram 162.429 pessoas infectadas com o vírus SARS-CoV-2 na Rússia, revelou a agência federal de estatísticas, Rosstat. Os dados mostram um panorama consideravelmente mais grave do que aquele que foi apresentado pela equipa encarregue pelo Governo da gestão do combate à pandemia, que apontava para 57.555 mortes atribuídas à covid-19.
A diferença está relacionada com as metodologias diferentes que os dois organismos utilizam para contabilizar o número de óbitos causados pelo vírus. A task-force de combate à covid-19 do Governo russo apenas inclui as mortes causadas comprovadamente pela doença associada ao vírus SARS-CoV-2. Por outro lado, a Rosstat contabiliza todas as mortes de pessoas que tenham contraído o vírus, e até casos suspeitos, independentemente da causa do óbito.
A revelação do número real de vítimas mortais catapulta a Rússia para o quarto lugar a nível mundial, apenas superado pelo México, Brasil e EUA. Actualmente, os dados governamentais colocam a Rússia em oitavo lugar em termos de mortes pela covid-19.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) recomenda que os países contabilizem todos os óbitos de pessoas infectadas com o novo coronavírus, “a não ser que exista uma causa de morte alternativa clara que não possa estar relacionada com a doença covid-19”, como por exemplo, um traumatismo.
Desde o início da pandemia que os números que vinham sendo revelados pelas autoridades russas despertavam alguma desconfiança em observadores externos e especialistas em saúde pública. Os primeiros sinais de que poderia haver irregularidades na forma como as vítimas estavam a ser categorizadas surgiram na fase inicial da pandemia, numa altura em que a taxa de letalidade da Rússia era consideravelmente inferior à de outros países europeus que atravessavam a primeira vaga.
O Governo russo assegurava que tal se devia à grande capacidade de testagem no país.
Os dados também mostram que houve um excesso de 324 mil mortes no ano passado face a 2019, o que causou uma diminuição da população russa de 700 mil pessoas, o dobro do ano anterior. É a queda mais acentuada no número total da população em 15 anos e aprofunda a crise demográfica vivida pela Rússia nas últimas décadas.
Os últimos dois meses de 2020 foram particularmente graves e são responsáveis por cerca de metade do número de óbitos de pessoas infectadas com o novo coronavírus e representam um falhanço da estratégia das autoridades russas que rejeitaram avançar para um novo confinamento. Em Moscovo, que na primeira vaga pôs em curso um vigoroso regime de isolamento físico da sua população, foram reabertos restaurantes e bares, que podem estar em funcionamento sem restrições de horários, bem como as escolas e universidades.
Receio político
Não é a primeira vez que a Rosstat desdiz as contabilizações de mortes atribuídas à covid-19. Em Agosto, os números publicados pela agência de estatística apontavam para um número de mortes em Maio e Junho três vezes superior ao que vinha sendo reportado nos balanços diários.
Também foram detectadas inconsistências na forma como muitas regiões disponibilizavam os seus dados sobre óbitos causados pela covid-19, especialmente quando as taxas de mortalidade totais eram comparadas com o mesmo período de anos anteriores.
O receio de retaliação política por parte do Kremlin poderá estar por trás da relutância de governadores provinciais em divulgar balanços de mortes rigorosos, diziam, na altura, alguns investigadores. “Essencialmente, todas as regiões russas estão a fazer o máximo para suprimir artificialmente a contagem de mortes”, dizia em Agosto ao Moscow Times o estatístico Mikhail Tamm.
“A forma mais inocente de o fazerem é distinguir mortes ‘por coronavírus’ de mortes ‘com coronavírus’ – em que a principal causa da morte é catalogada por outra doença crónica qualquer – e depois reportar apenas o número ‘por coronavírus’ como a estatística principal”, acrescentou o especialista.
As divergências, agora tornadas públicas, entre as metodologias do Kremlin e da Rosstat também enaltecem a independência da agência federal de estatísticas, que nos últimos anos também vinha sendo posta em causa. As projecções macroeconómicas, sobretudo, despertavam alguma incredulidade por parte de investidores internacionais.
Em 2017, a Reuters dava conta da desconfiança despertada pela divulgação de um recuo do PIB de apenas 0,2% no ano anterior, quando as previsões iniciais estavam acima de 3%. O Presidente Vladimir Putin decidiu transferir a Rosstat para a dependência directa do Ministério da Economia – até então, a agência respondia a todo o Executivo.
No final de 2018, foi nomeado para a direcção da agência Pavel Malkov, que tinha feito carreira em departamentos do Ministério da Economia, e garantiu não haver interferência do Kremlin nas estatísticas oficiais.