Covid-19: descida rápida dos casos relacionada com o fecho das escolas, mas é preciso ter atenção aos cuidados intensivos
Redução da incidência da covid-19 em Portugal está relacionada com o confinamento e o encerramento das escolas, de acordo com especialistas ouvidos pelo PÚBLICO. Porém, é preciso alguma cautela na interpretação dos dados.
A descida verificada, ao longo dos últimos dias, no número de novos casos diários de infecção pelo novo coronavírus em Portugal é inegável e está relacionada com a implementação de um confinamento mais rigoroso e, especialmente, com o encerramento das escolas. Mas, embora seja uma “boa notícia”, é preciso cautela, até porque os internamentos em cuidados intensivos continuam altos, assim como a pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
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A descida verificada, ao longo dos últimos dias, no número de novos casos diários de infecção pelo novo coronavírus em Portugal é inegável e está relacionada com a implementação de um confinamento mais rigoroso e, especialmente, com o encerramento das escolas. Mas, embora seja uma “boa notícia”, é preciso cautela, até porque os internamentos em cuidados intensivos continuam altos, assim como a pressão sobre o Serviço Nacional de Saúde (SNS).
Os modelos matemáticos não previam uma descida tão abrupta dos novos casos diários em Portugal, mas esta diminuição é evidente. Carlos Antunes, investigador da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), explica ao PÚBLICO que “as previsões são baseadas na tendência que se verifica” e que existe sempre alguma incerteza, nomeadamente sobre o impacto que variáveis como a prevalência da nova variante britânica do SARS-CoV-2, o confinamento ou a redução da mobilidade poderão ter na evolução da curva epidemiológica. Porém, agora é já possível observar o impacto que o confinamento e o encerramento das escolas tiveram na incidência da covid-19: “Conseguimos identificar uma relação de causa-efeito entre o fecho das escolas e uma desaceleração rápida” no número de novos casos, afirma Carlos Antunes.
“Tal como num carro, temos a velocidade e depois temos a variação da velocidade, que é a aceleração. Nós verificamos que houve uma ligeira desaceleração [dos contágios] seis a sete dias depois do início do confinamento [a 16 de Janeiro] e observamos que cerca de oito dias depois do fecho das escolas houve um reforço desta desaceleração. Ou seja, o início do confinamento foi o equivalente a tirarmos o pé do acelerador quando vamos a 120 km/h — o carro começa a andar mais devagar e, se o deixarmos, ele há-de parar. A seguir, houve um travão a fundo, a desaceleração [da taxa diária de incidência] caiu abruptamente, oito dias depois do fecho das escolas”, afirma o especialista.
Segundo Carlos Antunes, o encerramento das escolas foi agora “muito mais impactante” do que em Março do ano passado. Na altura, “tínhamos apenas uma incidência na ordem dos 400 casos por dia” e “o vírus não estava disseminado, não circulava na comunidade estudantil, estava restringido a alguns núcleos”, pelo que o fecho dos estabelecimentos de ensino “foi preventivo e não teve grande impacto na supressão da incidência”. Porém, em Janeiro “estávamos com uma incidência perto dos 14 mil casos diários e, quando as escolas fecharam, a infecção estava disseminada na população estudantil”. “Portanto, se o vírus circula na comunidade, a supressão através do fecho das escolas é imediata e tem logo uma consequência de causa-efeito. Se a transmissão do vírus é por via aérea e as pessoas não se contactam, quebram-se as cadeias de transmissão”, explica. Eventualmente, alguns alunos poderão ter “levado para a casa a infecção” e infectado o núcleo familiar, mas a infecção “já não saiu daí”.
Isto é também visível na variação da incidência por faixas etárias. “A análise da desaceleração [da incidência] é tão evidente que não deixa margem para dúvidas e são os grupos de estudantes, nomeadamente dos seis aos 12 anos e dos 13 aos 17 anos, que maior redução sofrem. A redução da taxa diária de casos aqui é tão abismal que não se compara com os outros grupos etários sequer”, nota o especialista.
R(t) é inferior a um
Segundo Carlos Antunes, Portugal conseguiu reduzir os casos de infecção a metade em 14 dias, tal como a Irlanda. Já a Bélgica conseguiu o mesmo em oito dias, França em cerca de dez dias e a Áustria em 22 dias.
Quanto ao índice de transmissão (Rt) da covid-19, fixou-se em 0,82 em Portugal, sendo que todas as regiões do país (incluindo Lisboa) apresentam um R(t) abaixo de 0,9. Este é, segundo Carlos Antunes, “um valor suficientemente baixo, mas é raro o país que consegue manter o R(t) nesse nível”, pelo que a expectativa é que este valor “comece agora a subir”. “Ele não pode ultrapassar o 1,0. Desde que esteja abaixo de um, o número de casos vai ser reduzido. Mas quanto mais estiver abaixo de um, mais rápido nós reduzimos [os casos]. Se estiver mais próximo de um, a redução será mais lenta”, explica o investigador da FCUL. O R(t) é de um quando uma pessoa contagia, em média, outra pessoa.
Além de o índice de transmissibilidade se ter vindo a manter abaixo de um, de acordo com os dados do site estatístico Our World in Data, Portugal deixou de ser o país com mais novos contágios pelo novo coronavírus por milhão de habitantes nos últimos sete dias, mas continua a liderar a tabela do número de mortes por dia.
Menos de três mil casos diários
Se esta tendência se mantiver, as projecções indicam que “daqui a duas semanas estaremos com menos de três mil casos diários”, segundo Carlos Antunes. Porém, o especialista nota que “há efeitos de saturação”, pelo que acredita que esta tendência não se irá manter. “O confinamento suprime uma determinada percentagem de contactos. Vamos imaginar que há 100% de contactos quando as pessoas circulam livremente. O confinamento restringe a mobilidade das pessoas e suprime 70% dos contactos e, portanto, os contágios que hipoteticamente ocorriam nessa população não ocorrem. Mas sabemos que 30% da população continua em mobilidade e, portanto, nesses 30% vai continuar a haver contágios porque o confinamento não é total e integral”, explica.
“Há uma espécie de saturação. O confinamento suprime e reduz a incidência até um determinado nível, mas a partir daí já não consegue reduzir mais. Observou-se isso no Verão e em Dezembro”, acrescenta Carlos Antunes, sublinhando que, “em Dezembro, continuámos com as mesmas medidas [de restrição] que tínhamos em Novembro” e que “a incidência chegou aos 3800 casos diários, foi baixando até aos 3500 e ficou por aí até surgir a terceira vaga”.
Além disso, há o efeito da fadiga pandémica, que poderá levar as pessoas a relaxarem os cuidados, e a “incógnita” da nova variante britânica do SARS-CoV-2, que tem uma prevalência superior a 50% na zona da Grande Lisboa e alguns focos a norte de Coimbra e na zona de Setúbal, o que “é detectável não só pela sequenciação genética que o Instituto Nacional de Saúde Doutor Ricardo Jorge faz de algumas amostras, mas também nos próprios testes PCR e de antigénio, que respondem mais rapidamente à positividade, porque há uma maior carga viral”.
Tiago Correia, professor de Saúde Internacional e investigador do Instituto de Higiene e Medicina Tropical da Universidade Nova de Lisboa (IHMT), afirma, por sua vez, que “é óptimo” que os novos casos estejam a baixar, mas lembra que é necessário ter em atenção a taxa de positividade nos testes de diagnóstico à covid-19 e eventuais alterações metodológicas na testagem.
Internamentos e cuidados intensivos com dinâmica diferente
Carlos Antunes nota ainda que é necessário ter em conta os números de internamentos e pacientes em cuidados intensivos, que apresentam “uma resposta e dinâmica diferente”. “Em Novembro, o número de pacientes em cuidados intensivos entre o pico da segunda vaga, que foi entre 21/22 de Novembro, e o Natal apenas se reduziu de 530 para 490. A redução num mês foi mínima. Portanto, se esta redução também for mínima daqui a um mês, nós vamos ter um grande problema e ficamos sem capacidade de decidir se nos podemos desconfinar”, afirma, destacando que estamos já a exercer “um impacto muito grande sobre o SNS”.
Já o presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública, Ricardo Mexia, nota que “tivemos um período de enorme crescimento e durante o mês de Janeiro as coisas complicaram-se substancialmente”. “Entretanto, implementámos várias medidas, entre as quais um confinamento e a interrupção da actividade escolar, que contribuíram para a redução dos números”, diz. Porém, destaca que ao fim-de-semana há uma menor capacidade laboratorial, o que poderá ter impacto nos dados divulgados esta segunda-feira pela Direcção-Geral da Saúde. Ainda assim, “é inequívoco” que estamos perante uma descida dos novos casos, pelo que “temos que manter de alguma forma esta tendência porque, apesar da queda dos números da incidência, ainda poderá demorar algum tempo até reduzirmos os internamentos, os pacientes em unidades de cuidados intensivos e também a mortalidade, que ainda continua com valores muito elevados”.
Além disso, Ricardo Mexia lembra que os números poderão voltar a subir, “até porque se nós acharmos que está tudo resolvido e, do ponto de vista dos comportamentos, voltarmos a cometer os erros que cometemos no passado, rapidamente podemos repetir aquilo que já aconteceu”. “Esta diminuição das cautelas e das restrições tem que ser planeada de forma adequada para não deitarmos tudo a perder outra vez. A pressão nos serviços de saúde ainda se mantém significativa. Portanto, não é apenas o decréscimo da incidência, temos que assegurar que a pressão nos serviços de saúde melhora”, conclui, sublinhando ainda que “é importante que a taxa de positividade — que estava muito elevada —, possa passar a valores normais, no máximo de 5%”.
“Nós podemos aliviar [as restrições] quando chegarmos a um porto seguro. Contudo, esse aliviar vai ser progressivo e tem que ser possível medir o seu impacto. Ou seja, as escolas não podem abrir todas ao mesmo tempo, vamos ter que abrir progressivamente, avaliar e depois decidir se abrimos mais [escolas] ou fechamos”, diz Carlos Antunes. É quase como uma mola: “Tenho que ter algo que substitua a pressão que estou a exercer” — e é aqui que entra a testagem. “Temos que triplicar ou quadruplicar o número de testes [de diagnóstico à covid-19] para haver uma testagem maciça, que é o que os outros países estão a fazer”.
Segundo o especialista da FCUL, é importante “não criar expectativas porque há ainda uma incerteza muito grande”. Mais ainda, é preciso “monitorizar e ter critérios muito rigorosos e precisos sobre como e quando é que nos vamos desconfinar e principalmente olhar para a pressão nos cuidados intensivos”. Até porque, cada vez mais, os pacientes internados com covid-19 nos cuidados intensivos “são pessoas mais jovens” que “têm uma permanência mais prolongada porque resistem mais do que os idosos”. “Como permanecem durante muito tempo, o aliviar dos cuidados intensivos é muito mais lento”, explica.
“Os balanços fazem-se no fim”
Quanto ao sucesso de Portugal no controlo da terceira vaga, Tiago Correia nota que é necessária alguma prudência na interpretação dos dados, destacando que seria expectável que houvesse uma descida dos novos casos, tendo em conta que a curva epidemiológica sofreu um pico e foram adoptadas medidas de confinamento. Além disso, sublinha que a pandemia não está ainda controlada em Portugal e que estamos ainda longe dos valores recomendados pelo Centro Europeu de Prevenção e Controlo das Doenças.
Já Ricardo Mexia destaca que “os balanços se fazem no fim” e acredita ser ainda “prematuro estar a tirar muitas conclusões”. “Vamos aguardar que as coisas estabilizem. Obviamente que é uma boa notícia que os números estejam a baixar, isso é fundamental e esperemos que, em breve, também os internamentos e a mortalidade se possam reduzir. É para isso que estamos todos a ‘torcer’ que aconteça e a esforçarmo-nos para que se materialize”, afirma.