O silêncio passou a ser norma numa Ribeira à espera de apoio

Empresas e empresários em nome individual com sede fora de Lisboa não têm acesso a apoios da câmara. Sem moradores, sem turistas, sem restaurantes, na Ribeira fazem-se contas à vida.

Foto
patricia martins

O dia de uma peixeira começa quando Lisboa está a ir para a cama. Há que chegar cedo ao mercado abastecedor (MARL) para garantir o melhor peixe e tê-lo em banca logo de manhã. É uma rotina repetida anos a fio: ir buscar a mercadoria entre a meia-noite e a uma, dormitar à porta do mercado enquanto não abre, montar o escaparate entre as cinco e as seis, esperar os clientes.

A verdade faz-nos mais fortes

Das guerras aos desastres ambientais, da economia às ameaças epidémicas, quando os dias são de incerteza, o jornalismo do Público torna-se o porto de abrigo para os portugueses que querem pensar melhor. Juntos vemos melhor. Dê força à informação responsável que o ajuda entender o mundo, a pensar e decidir.

O dia de uma peixeira começa quando Lisboa está a ir para a cama. Há que chegar cedo ao mercado abastecedor (MARL) para garantir o melhor peixe e tê-lo em banca logo de manhã. É uma rotina repetida anos a fio: ir buscar a mercadoria entre a meia-noite e a uma, dormitar à porta do mercado enquanto não abre, montar o escaparate entre as cinco e as seis, esperar os clientes.

Esperar, esperar, esperar. “Ao sábado ainda mexe um bocadinho, mas de terça a sexta está pior do que no primeiro confinamento”, queixa-se Zézinha. Ao seu lado, a mãe vai escamando em silêncio uma dourada de mar. “Não estamos a ganhar nem para as despesas”, desabafa a peixeira.

Sábado é dia de azáfama no Mercado da Ribeira. A clientela aglomera-se junto aos negócios da sua predilecção e os comerciantes agradecem a fidelidade, mas avisam que tamanho movimento é coisa rara nos dias que correm. “Nesta zona não mora ninguém”, explica Zézinha. “Aqui sobrevivemos é com os restaurantes e com os turistas. Agora não há nada. Esta semana fui duas vezes ao MARL, na semana passada fui uma. Antes ia praticamente todos os dias.”

Com significativas quebras de vendas, os comerciantes da Ribeira contavam com o programa de apoio à economia lançado pela Câmara de Lisboa, mas serão poucos os contemplados com as verbas. Uma alínea do regulamento deixa quase todos de fora: para ter direito a apoio é obrigatório que a sede da empresa ou do empresário em nome individual seja em Lisboa.

“Nós preenchemos todos os requisitos menos a sede. Estamos a ser penalizados”, lamenta Ermelinda Neves, que há 31 anos gere com a mãe uma banca de mariscos. Residente no Montijo, é lá que tem a sede do negócio. A peixeira Zézinha mora na Amadora, o florista Rodrigo Pimenta em Carcavelos. Nenhum deles pode candidatar-se ao apoio camarário. Estão nesta situação mais de três dezenas de comerciantes do mercado, que na sexta-feira escreveram uma carta a Fernando Medina a pedir que se lembre deles.

“Estivemos sempre a laborar para que nada faltasse aos lisboetas. É um ex-líbris da cidade, aqui há tudo o que pode existir num mercado”, afirma Ermelinda, que escreveu a carta e se encarregou de recolher assinaturas. “Estamos muito revoltados”, sintetiza.

Teresa Carvalho, que comercia frutas e hortaliças, está a contar receber ajuda porque reside em Lisboa. Só ainda não fez o pedido porque as candidaturas à nova fase do Lisboa Protege ainda não abriram. A partir de agora, anunciou Medina há duas semanas, os empresários em nome individual sem contabilidade organizada também vão poder usufruir de apoio, o que não acontecia na primeira fase. Mas vai manter-se a regra de que a sede do negócio tem de estar na cidade.

“Tenho colegas que estão cá há 60 anos e agora dizem-lhes que não têm direito a nada porque não moram em Lisboa”, relata, indignada. “Durante a semana estamos aqui às moscas. O silêncio chega a ser de tal maneira que eu oiço as minhas colegas a escamar o peixe lá ao fundo.”

No ano passado, depois de um mal-entendido inicial, os comerciantes ficaram isentos do pagamento da renda mensal e, entre Setembro e Dezembro, só pagaram 50%. “Estou muito agradecido por isso”, sublinha Rodrigo Pimenta, florista. “O nosso forte é trabalhos de funeral e agora há poucos velórios, por isso reflecte-se no negócio”, comenta.

Nos últimos meses fecharam pelo menos cinco bancas. “Não sei se foi quarta ou quinta, mas quando eram 10h ainda só tinha feito 1,76 euros”, conta Teresa Carvalho. “Eu forneço uma série de restaurantes e nenhum deles está a trabalhar em take-away.

“É um problema burocrático simples de resolver”, opina Ricardo Moreira, deputado do BE na assembleia municipal que tem acompanhado a situação na Ribeira e em Campo de Ourique, os dois únicos mercados ainda sob gestão directa da câmara. “Se os comerciantes pudessem ter a sede na sua banca, isto resolvia-se, só que isso não é permitido”, diz. “Tenho lá ido muito e neste confinamento está absolutamente vazio, é impressionante. Estamos a falar de gerações. Estão muito desanimadas e agora precisam de apoio para se manter à tona de água”, alerta.

O problema não é exclusivo da Ribeira, nem sequer dos mercados. Luís Pereira tem um restaurante em Santa Engrácia desde 2017 mas, como empresário em nome individual com sede no Seixal, viu-lhe ser recusado apoio. “Sempre trabalhei em Lisboa, sempre, sempre, sempre. Só vou ao Seixal para dormir”, relata o dono do Tabernário do Bairro, na Rua Afonso Domingues.

Em 2021 ainda não abriu um único dia. “Não tenho mais nenhuma fonte de rendimento. Estou a viver com ajuda da minha mãe”, conta Luís. “Desde que trabalho na restauração que me tornei num embaixador não oficial de Lisboa, pago tudo e mais alguma coisa. Se fosse daqueles que foge aos impostos se calhar tinha dinheiro em casa e não precisava de o pedir”, desabafa.