Belém, arranjos florais e “infantil obsessão ideológica”
O passado nunca foi, nunca será intocável. Muda sempre. E muda gradualmente ou por ruptura. Graves riscos se correm em pretender o contrário. A história ensina-o ad nauseam.
Depois de ter andado a defender o património público que por aí temos, repudiando a iconoclastia dos activistas tribais contra estátuas que projectam no presente valores em que também não me revejo, estou neste caso do lado da eliminação dos brasões florais de cidades do antigo império colonial, ainda penosamente subsistentes em Belém.
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Depois de ter andado a defender o património público que por aí temos, repudiando a iconoclastia dos activistas tribais contra estátuas que projectam no presente valores em que também não me revejo, estou neste caso do lado da eliminação dos brasões florais de cidades do antigo império colonial, ainda penosamente subsistentes em Belém.
Agradeço, pois, a reacção peticionária daqueles que, “por infantil obsessão ideológica”, querem manter estes ícones sobrevindos do passado. É que me permitem clarificar aquilo que os prosélitos das agendas tribais não entenderam nas violentas acusações que me dirigiram: também eu não considero como “vacas sagradas” os símbolos do passado, existentes em espaço público. Cada presente tem toda a legitimidade para reconfigurar o espaço que habita, deixando cair encenações e representações que já não lhe digam nada e criando outras. Deve contudo fazê-lo com grande prudência e dentro da óptica de que somos muito mais por ele tomados do que verdadeiramente o transformamos. Belém é especialmente emblemática disto, por ser um dos nossos mais simbólicos lugares, fruto de intensa sedimentação histórica, um lugar com muitas explicações, conforme já aqui escrevi (PÚBLICO, 1 de Agosto de 2015).
Na Belém que temos hoje não defenderia, por exemplo, a implosão do Padrão dos Descobrimentos (e ele bem incomodou nossos pais, que se não vivessem em ditadura teriam impedido a sua construção), nem do Centro Cultural de Belém (símbolo do cavaquismo que bem incomodou muitos da minha geração, eu incluído, pela posição que ocupa, em consumação final do amesquinhamento do Mosteiro dos Jerónimos, que as ordenações régias impunham fosse visto desde a entrada no Tejo e não apenas por nesga fronteira, como actualmente). O espaço foi sendo construído e é o que é, aceitando eu, no horizonte de vida que tenho, que assim se mantenha na sua estrutura básica.
Mas defendo, por exemplo, a imediata mudança do nome da Praça do Império para outra coisa qualquer, Vasco da Gama, por exemplo como era antes de 1940. Todos os dias tardam para esta mudança. E posso antever que futuras gerações queiram reconfigurar o espaço mais profundamente, quem sabe chegando ao ponto de desfazer todo o sistema “dos alinhamentos, dos terreiros, da civilização vandálica” (uso a expressão de Herculano, que na sua condição de presidente da Câmara Municipal de Belém tantas voltas deve ter dado no túmulo) imposto pelo Estado Novo, que deu cabo da vida de bairro para erguer um não-lugar próprio para desfiles militares e hoje tomado também por turistas.
No futuro tudo pode acontecer. E a única coisa que posso desejar é que novas sedimentações históricas procedam inversamente ao “ciclone centenário”, quer dizer não apaguem totalmente as memórias passadas (mesmo as incómodas) e procurem incluir parte delas em novas reconfigurações do espaço, sendo tudo feito dentro de percepções amplamente suportadas.
Esse equilíbrio, essa moderação, essa sageza de em cada presente decidir o que manter e o que recolher em museus (nunca destruir) é difícil, eu sei, mas é também a que nos faz adultos, ainda que nos divida, como é próprio da vida. Falo por mim e dou exemplos hipotéticos. Se nalgum lado tivesse em algum momento sido erguida uma estátua a Mussolini, eu defenderia que devia ser retirada para museu. Se noutro local houvesse uma com Mouzinho e Gungunhana (uso o aportuguesamento do nome, desculpem os tribalistas) prostrado aos pés, eu defenderia o mesmo caminho. Pior ainda: se em Évora fosse erguida uma estátua ao Giraldo, dito o Sem Pavor, com cabeça ensanguentada de mouro na mão e tudo (como ainda consta do brasão da cidade, que já devia ter sido alterado)..., eu seria contra. Etc., etc. Ao invés e embora de mau gosto (tanto quanto à estética, como quanto à mensagem) defendo a inviolabilidade da estátua do Padre António Vieira no largo Trindade Coelho, em Lisboa; muito mais a de Álvares Cabral, na Estrela, também em Lisboa. Até bustos de Salazar eu defendo, onde subsistem. No fundo, sendo patrimonialista, tenho uma postura algo conservacionista. Mas não confundo esta postura com infantilidade passadista ou, muito menos, com ideologia reaccionária.
No caso concreto de Belém, pretende o nosso presente proceder à alteração minimal na mitologia imperial imposta ao lugar. Fá-lo, ademais, em nome da reposição do projecto inicial de Cottinelli Telmo, ou seja, não se trata de corte radical com o eventual regresso à antiga praça Vasco da Gama, ao seu jardim de passeios e canteiros ondulantes, bem mais humanizados do que as esquadrias actuais, feitas para impressionar e esmagar o vulgo. Causa isto engulho a quem (ingenuamente ou não…) pensa poder congelar o espaço público? Pois bem, tenho duras notícias para lhes dar: nunca, em local algum, a História foi congelada. Hoje são os brasões florais, amanhã, queiram ou não, serão os brasões em pedra da fonte luminosa e toda ela depois. E será tanto mais assim quanto mais insistirem no infantilismo ideológico de manutenção de todos os ícones herdados do passado.
O passado nunca foi, nunca será intocável. Muda sempre. E muda gradualmente ou por ruptura. Graves riscos se correm em pretender o contrário. A história ensina-o ad nauseam.