Pais em teletrabalho com filhos pequenos estão desprotegidos e sem alternativas
O apoio aos pais criado com o fecho das escolas só cobre 66% da remuneração de base. E exclui quem está em teletrabalho. Limites que estão a criar uma onda de desespero e que penalizam sobretudo as mulheres.
Joana Grilo, 27 anos, é operadora de call center e está há duas semanas em teletrabalho com os filhos de três e oito anos em casa a pedir atenção constante. Atender as chamadas e conseguir que as crianças estejam sossegadas durante o dia inteiro tem-se revelado uma missão praticamente impossível, que a está a levar à exaustão. Como centenas de mães e pais em teletrabalho, Joana está excluída do apoio excepcional à família recuperado pelo Governo quando, a 21 de Janeiro, as escolas fecharam. E faltar, perdendo o direito à remuneração, é “impensável”. “Não conseguiríamos sobreviver”, diz.
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Joana Grilo, 27 anos, é operadora de call center e está há duas semanas em teletrabalho com os filhos de três e oito anos em casa a pedir atenção constante. Atender as chamadas e conseguir que as crianças estejam sossegadas durante o dia inteiro tem-se revelado uma missão praticamente impossível, que a está a levar à exaustão. Como centenas de mães e pais em teletrabalho, Joana está excluída do apoio excepcional à família recuperado pelo Governo quando, a 21 de Janeiro, as escolas fecharam. E faltar, perdendo o direito à remuneração, é “impensável”. “Não conseguiríamos sobreviver”, diz.
“No confinamento anterior também estive em teletrabalho, mas não senti falta de ter apoio do Estado porque o meu marido estava desempregado e cuidava das crianças. Era uma aflição porque ele perdeu o emprego na área da hotelaria, mas não sentia esta aflição por causa dos meus filhos. Neste momento, com o meu marido a trabalhar, está a tornar-se impossível. Sinto-me completamente exausta”, relata numa conversa telefónica com o PÚBLICO interrompida, amiúde, pelo filho mais novo a pedir para a mãe largar o telefone.
“Ele já não aguenta ver-me ao telefone”, comenta Joana, acrescentando que esta vozinha é muitas vezes ouvida pelos clientes do outro lado da linha quando está a trabalhar. “É muito difícil ter uma criança tão pequena a pedir atenção e fazer um atendimento de qualidade”, assume.
Joana trabalha das 10h às 19h, e tenta gerir a hora do almoço e os 40 minutos de pausa diária consoante as necessidades das crianças. Mas a verdade é que isso implica uma organização muito rigorosa na preparação das refeições ou na procura de brincadeiras que eles possam fazer de forma autónoma. Com o regresso da escola à distância, já a partir de 8 de Fevereiro, esta jovem mãe fica ainda mais apreensiva.
“O Estado não se está a querer responsabilizar por situações como a que eu e muitas colegas estamos a viver. Eu não estou em teletrabalho porque quero ou porque a minha empresa quer. O Governo impôs o teletrabalho e decidiu encerrar as escolas. Tem de nos ouvir”, desafia.
Aos sindicatos da CGTP têm chegado dezenas de situações como a de Joana Grilo. São sobretudo mulheres que trabalham em call centers em regime de teletrabalho, de famílias monoparentais ou em que o companheiro trabalha fora ou também está em teletrabalho. Algumas tiveram de dar faltas justificadas sem retribuição – que é a única alternativa que lhes resta, com confirmou ao PÚBLICO o Ministério do Trabalho e da Segurança Social.
É o que acontece com Noémia (nome fictício, porque pediu anonimato), mãe de três filhos com dez meses, sete e dez anos. No dia em que o Governo anunciou o fecho das escolas, esta operadora percebeu logo que não poderia continuar a fazer atendimento telefónico com os três filhos em casa e com o marido também em teletrabalho.
“Era impossível conciliar o teletrabalho com o cuidado dos miúdos. Pela natureza do trabalho, são chamadas que exigem alguma qualidade, e por eles serem pequenos precisam muito de atenção e cuidados”, relata ao PÚBLICO.
Está há duas semanas com as faltas justificadas e sem receber qualquer rendimento. Desesperada, pergunta como é que vai pagar a renda da casa, a alimentação, as fraldas, a luz e a água: “Não é possível sobreviver com três crianças e estando só um a receber o ordenado mínimo. Para ajudar a pagar as despesas, em Janeiro, tivemos de pedir dinheiro emprestado.”
“A Segurança Social devia dar o apoio aos pais que tiverem que ficar com os filhos, independentemente de um deles estar em teletrabalho ou não. Porque se estão em teletrabalho não vejo como irão cuidar das crianças”, afirma.
Fátima Messias, dirigente da CGTP, lamenta que o Governo esteja a colocar as crianças em segundo plano e a deixar muitas famílias sem qualquer protecção. “Não se perspectiva que as escolas abram tão depressa e com as aulas a decorrer ainda se torna mais difícil. As leis não podem ser cegas, se o teletrabalho pode ser uma solução provisória nuns casos, nestas situações seguramente não é”, alerta.
A solução, sublinha a dirigente da central sindical, é dispensar os trabalhadores com filhos até aos 12 anos de teletrabalho, justificar as faltas e pagar-lhes o salário por inteiro (o apoio aos pais em trabalho presencial só cobre 66% da remuneração de base). Também a UGT tem alertado o Governo para a necessidade de prever um apoio a 100% e incluir nele os pais em teletrabalho com filhos até aos 12 anos. Até agora, os apelos têm ficado sem resposta.
Casos como os de Joana e Noémia são paradigmáticos, mas os problemas de conciliação do trabalho à distância com o cuidado dos filhos estendem-se a outras actividades. Ana Ribeiro, 42 anos e professora de inglês, já pôs uma secretária para a filha ao lado da sua no escritório. Depois da experiência do ano passado, esta foi a estratégia encontrada para conseguir leccionar à distância e acompanhar a pequena Joana, de sete anos, quando a partir desta segunda-feira começarem as aulas à distância.
“Ela é bastante autónoma, mas são muitas horas”, relata, acrescentando que no primeiro confinamento houve dias em que a menina passava manhãs inteiras sozinha enquanto a mãe leccionava. “Se com uma filha é complicado, nem imagino como será dar aulas a partir de casa com mais crianças e de idades mais baixas”, desabafa Ana, que tem a cargo cinco turmas do ensino profissional e ainda dá apoio a alunos do oitavo e do nono ano.
Sem rendimento e sem alternativas
Sem direito ao apoio excepcional à família (que apenas abrange pais com crianças até aos 12 anos e em trabalho presencial), que alternativa resta a quem está em teletrabalho e não consegue conciliá-lo com o cuidado das crianças? De acordo com fonte oficial do Ministério do Trabalho e da Segurança Social, “os pais podem beneficiar de falta justificada, sem direito a remuneração e sem direito ao apoio excepcional à família” para darem assistência a filho por motivo de suspensão de actividades lectivas e não lectivas presenciais. Para isso, devem comunicar por escrito ao empregador com uma antecedência mínima de cinco dias.
Questionado sobre a disponibilidade para alterar as regras do apoio, que neste confinamento foi pedido por 22 mil trabalhadores, o Governo não respondeu.
O PÚBLICO tentou perceber junto de dois advogados especialistas em direito laboral se haverá outras formas de ultrapassar o problema à luz do Código do Trabalho e a conclusão é que não há muitas alternativas.
“O trabalhador pode ter as faltas justificadas com perda de retribuição e pode pôr férias se forem acordadas com o empregador. São as hipóteses que tem”, resume Gonçalo Delicado, da sociedade Abreu Advogados.
Pedro da Quitéria Faria, sócio da Antas da Cunha Ecija & Associados, começa por dizer que neste caso a alternativa não pode ser encontrada no Código do Trabalho, porque “é o próprio diploma legal e a própria Segurança Social, mediante directrizes superiores, que excluem os pais em teletrabalho do acesso ao apoio excepcional à família”. “É o legislador que entende que os pais podem teletrabalhar e tomar conta dos filhos em simultâneo. Pode discutir-se a bondade desta solução legal, naturalmente, mas é o que decorre da lei e é o que está a acontecer”, acrescenta.
E mesmo os artigos relacionados com a protecção da parentalidade previstos no código laboral e que permitem que o trabalhador faça um horário flexível não resolvem a questão, “porque terá de trabalhar na mesma – e pode ser em regime de teletrabalho – só que contará com um horário flexível, ou seja, pode escolher, dentro de certos limites, as horas de início e termo do período normal de trabalho”.
Outra hipótese seria a celebração de um acordo de redução do período normal de trabalho, caso o trabalhador sinta que não é capaz de gerir as suas funções em regime de teletrabalho e a assistência aos filhos. Mas isso, sublinha o advogado, “acarretará forçosamente uma redução salarial nessa proporção e talvez isso também não vá ao encontro das pretensões actuais das famílias”.
E é possível os trabalhadores recusarem teletrabalho, por entenderem que não reúnem as condições para isso? “Tendo presente a obrigatoriedade da adopção do regime de teletrabalho, um trabalhador só pode recusar-se se as suas funções não forem compatíveis com esse exercício ou então se não dispuser de condições para o mesmo. E o que é isto de não dispor de condições? É, por exemplo, e, desde logo, não dispor de condições habitacionais ou não ter um contrato de telecomunicações, não tendo internet em sua casa. Não está previsto nem será aceite a recusa de teletrabalho por motivo de assistência aos filhos, mormente quando são as próprias entidades responsáveis que veiculam que os beneficiários que possam prestar trabalho em regime de teletrabalho não podem aceder ao apoio excepcional à família, e ainda porque, competirá às empresas o fornecimento dos instrumentos de trabalho necessários para a realização da laboração em teletrabalho” responde Pedro Faria.
Reconhecendo a existência de situações limite em que o teletrabalho se revela incompatível com o cuidado dos filhos, Gonçalo Delicado lembra que “estamos a viver uma situação de pandemia e há uma tentativa de manter o maior número de postos de trabalho”. “O Governo entende que, estando as pessoas a trabalhar, a economia está activa e preservam-se postos de trabalho. Claro que tem de haver alguma condescendência por parte dos empregadores e tem de haver um entendimento entre as partes no sentido de perceberem a melhor forma de as pessoas prestarem a sua actividade dentro da realidade de cada um”, afirma.
Mulheres “são as mais penalizadas"
A dirigente da CGTP, Fátima Messias, alerta para a “pressão enorme” que é colocada sobre os pais em teletrabalho e não tem dúvidas de que as mulheres “são as mais penalizadas”. “As evidências apontam para isso”, adianta.
Sara Falcão Casaca, professora do ISEG-School of Economics and Managment, alerta que esta modalidade de trabalho vem reforçar as desigualdades entre homens e mulheres e espera que os estudos que estão a ser feitos neste momento possam ser um “farol importante” para o conhecimento sobre os impactos de género da pandemia e sobre o efeito do teletrabalho na conciliação entre a vida profissional, pessoal e familiar.
“Todos os estudos que vamos conhecendo, a nível europeu e internacional, dão conta de como o trabalho doméstico e relativo ao cuidar tem aumentado com a pandemia”, e “as investigações preliminares realizadas por cá também evidenciaram (na primeira vaga da pandemia) que foram as mulheres em teletrabalho com crianças quem mais exprimiu a dificuldade na gestão dos tempos”, adianta.
De resto, sublinha, as pesquisas anteriores à pandemia já evidenciavam assimetrias de género na vivência do teletrabalho, com a simultaneidade de tarefas ao longo do dia – alternando entre as tarefas domésticas e as profissionais – a recair sobre as mulheres. A professora o ISEG não vê por que seria diferente no actual contexto.
“É de supor que em determinadas franjas, essencialmente mais jovens, as masculinidades cuidadoras estejam a encontrar o enquadramento propício à sua expressão, mas tenho reservas quanto a qualquer generalização desse efeito”, adianta.
No actual contexto em que as crianças e jovens voltam a estar em casa, destaca Sara Falcão Casaca, as dificuldades de conciliação para quem está teletrabalho “estão certamente a ser fortíssimas” e “é de antecipar, com base naquilo que conhecemos, que essa enorme dificuldade esteja a ser essencialmente vivida pelas mulheres”.
A professora defende que essas dificuldades deviam integrar as medidas de apoio às famílias: “Enquanto a situação perdurar, seria de equacionar que as medidas facilitadoras da conciliação abrangessem necessariamente tanto mães como pais, fomentando a partilha das responsabilidades familiares, sem perda de rendimento.”