O momento para discutir o futuro das cidades é agora

Com o país à beira de receber avultados fundos europeus, “há um discurso sobre o território e sobre as cidades que se foi perdendo”. Um congresso no ISCTE quer lançar a discussão.

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O teletrabalho veio para ficar? E como é que isso se vai reflectir no espaço público, nos transportes, na habitação? Nelson Garrido

Digitalização, descarbonização e reindustralização são palavrões que entraram no discurso político e mediático a reboque dos grandes investimentos que se prevêem com a chegada dos novos fundos europeus. Mas que país é este que se prepara para receber avultadas quantias que, garante-se, servirão para catapultar o seu desenvolvimento?

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Digitalização, descarbonização e reindustralização são palavrões que entraram no discurso político e mediático a reboque dos grandes investimentos que se prevêem com a chegada dos novos fundos europeus. Mas que país é este que se prepara para receber avultadas quantias que, garante-se, servirão para catapultar o seu desenvolvimento?

A digitalização da economia e da sociedade “é absolutamente inevitável”, diz Paulo Tormenta Pinto, “mas isso não é tudo.” “Precisamos de pensar questões essenciais, precisamos do direito à cidade, precisamos de pensar numa economia que tenha relações com o próprio território onde a economia é aplicada.”

O professor de arquitectura e urbanismo e investigador do Centro de Estudos sobre a Mudança Socioeconómica e o Território do ISCTE (Dinâmia’Cet) é o coordenador de um congresso que pretende lançar a discussão. Tem havido um “enfoque demasiado grande nas transformações da indústria 4.0, na maneira como se encara a descarbonização”, mas não se pode perder de vista a “consciência sobre o território, sobre a posição geográfica, sobre os activos que o estar aqui, neste sítio concreto, com estas oportunidades, com estas condições nos podem trazer em vários sectores”, afirma Tormenta Pinto.

Pelo congresso Grand Projects – Urban legacies of the late 20th century, que decorre entre 17 e 19 de Fevereiro, vai passar a reflexão sobre como usar os mega-projectos que aí vêm para produzir efectivas mudanças no território, nas cidades e na vida das pessoas. “Nós não encontramos grande discurso para aquilo que se espera num futuro próximo”, constata o docente.

A premissa do encontro é que para pensar o futuro é conveniente estudar o passado. Com a preparação da Expo-98, a década de 1990 abriu caminho a um grande movimento que varreu o país. “O final do século XX foi um dos últimos, um dos escassos momentos que se debateu tão fortemente as cidades, a sua transformação, em que houve projectos de requalificação urbana a uma escala nacional”, diz Tormenta Pinto. A sua equipa tem estudado o impacto da Expo e do programa Polis no pensamento urbanístico em Portugal e nas cidades onde houve obras. Não foi um processo isento de falhas, “mas de uma maneira geral há um balanço interessante.”

“Aquilo que pretendemos com este congresso é pôr de manifesto esta cultura urbana que se lançou no final do século XX e confrontar com as questões de hoje”, explica. Esse modelo tem de ser debatido tendo em conta o que correu bem, o que não correu bem, e os novos problemas colocados pela crise pandémica e ambiental. O teletrabalho veio para ficar? Que características devem ter as novas casas? Como se vão deslocar pessoas e mercadorias? De que forma o espaço público se vai adaptar?

“Há uma convicção generalizada de que a execução dos fundos europeus só pode ser realizada se houver uma transformação dos procedimentos e da economia na sua base. É nesse contexto que a digitalização aparece como uma espécie de inevitabilidade. Mas no meio disto há um discurso sobre o território e sobre as cidades que se foi perdendo”, afirma Paulo Tormenta Pinto. “Precisávamos de um discurso maior sobre a base em que a economia vai assentar, precisávamos de uma base territorialista que fosse também forte.”

A 17 de Fevereiro, primeiro dia do congresso, o presidente da Ordem dos Arquitectos, Gonçalo Byrne, vai debater com o economista Ricardo Paes Mamede e com o ministro do Ambiente, Matos Fernandes, sobre o futuro das cidades portuguesas, numa conversa moderada pelo arquitecto Nuno Grande. Nos dois dias seguintes o olhar vira-se para contextos mais específicos, tanto em Portugal como no estrangeiro. A socióloga e planeadora urbana Claire Colomb falará das transformações do pensamento urbano em Berlim e Barcelona nos últimos 30 anos e o arquitecto Josep Acebillo, que coordenou a construção dos Jogos Olímpicos de Barcelona 1992, discutirá com o arquitecto e ex-vereador lisboeta Manuel Salgado sobre transformação do espaço público. Estão ainda previstas intervenções do geógrafo Christian Schmid, especialista em urbanismo, e do historiador da arquitectura Jean-Louis Cohen.

Portugal, e muito concretamente Lisboa, chegaram atrasados às discussões e transformações urbanas que o centro da Europa começou a fazer logo no pós-Guerra. Isso não é necessariamente mau, defende Paulo Tormenta Pinto. “O atraso pode traduzir-se numa oportunidade para fazer as coisas bem.”

“Lisboa foi ganhando um estatuto de grande centralidade que absorveu praticamente o país inteiro. Antes da pandemia tinha uma capacidade de atracção, de gerar riqueza completamente incomparável com o resto do país. Mas isso foi fazendo com que o município se fosse separando da sua área metropolitana”, analisa, sublinhando a importância de pensar todo o território.

E exemplifica: “Não conseguimos encontrar uma capital europeia que disponha de uma inter-relação com estas áreas naturais como Lisboa ainda tem no estuário do Tejo. E é muito impressionante como não se consegue desenvolver a partir disto uma ideia de desenvolvimento urbano. Em alguns momentos isso tem sido tentado, mas há muito mais que se podia fazer, no campo da investigação, até com algumas indústrias.”