Roterdão 2021 foi o festival de resistência à inércia
Cinema de muitos cantos do mundo e de alguns que raramente filmam, como a Tunísia ou a República Dominicana: a edição virtual do 50.º aniversário do festival foi uma semana de descobertas e de crença no futuro.
Chega ao fim o “primeiro tempo” do 50.º aniversário do festival de Roterdão: uma semana de filmes de todo o mundo, quase todos em estreia mundial, que foram mostrados online ao público holandês e à imprensa e indústria de todo o mundo, a ser seguida em Junho por uma celebração (espera-se) física da efeméride. A exibição dos filmes a concurso – nas selecções Ammodo Tiger de curta-metragem, nas competições de longas Tiger e Big Screen e no panorama de ante-estreias Limelight – termina este sábado à noite, com os premiados a serem anunciados a meio da tarde de amanhã, domingo.
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Chega ao fim o “primeiro tempo” do 50.º aniversário do festival de Roterdão: uma semana de filmes de todo o mundo, quase todos em estreia mundial, que foram mostrados online ao público holandês e à imprensa e indústria de todo o mundo, a ser seguida em Junho por uma celebração (espera-se) física da efeméride. A exibição dos filmes a concurso – nas selecções Ammodo Tiger de curta-metragem, nas competições de longas Tiger e Big Screen e no panorama de ante-estreias Limelight – termina este sábado à noite, com os premiados a serem anunciados a meio da tarde de amanhã, domingo.
E provou que é possível um festival de “primeira linha”, com uma reputação a manter, gerir com sucesso uma edição puramente virtual. Foi o festival possível, mais do que o desejável; no entanto, não faltaram filmes estimulantes, interessantes, sedutores, desafiantes, atentos, com óptimas descobertas do Brasil (Madalena, de Madiano Marcheti), da China (Bipolar, de Queena Li) ou de Espanha (Destello Bravío, de Ainhoa Rodriguez).
Contudo; num certame em que houve tantas e tão interessantes descobertas de cinematografias longínquas ou raras (e já lá vamos), é significativo que dois dos filmes considerados como revelações pela imprensa venham de países com produção regular: Gritt, da dinamarquesa Tronje Soimer Guttormsen, e Friends and Strangers, do australiano James Vaughan. É um dos problemas nefastos da indústria (e) dos festivais: o modo como se continua a pensar no cinema em termos de fórmulas, quando aquilo que é mais excitante num festival é ir à procura daquilo que não se viu ou que não se costuma ver.
Como aquela que foi, para nós, uma das grandes fitas do concurso Tiger: Pebbles, do indiano P. S. Vinothraj, não tem nada a ver com a ideia dos musicais faustosos de Bollywood, construindo-se como uma miniatura desorientante e finalmente comovente do quotidiano do estado de Tamil Nadu, durante um período de seca prolongada. Vinothraj radiografa a complicada relação familiar entre um pai alcoólico e impetuoso e o seu filho ainda menino ao longo de um imprevisto trajecto a pé ao sol do meio-dia, ao mesmo tempo que desenha com economia as carências de uma zona aparentemente abandonada pelos governantes. E vira a seu favor a escassez de meios com um notável trabalho de câmara e de fotografia cujo virtuosismo formal é colocado ao serviço da história e dos actores, sem nunca se esticar para lá do que sabe.
Se esta Índia não é de todo a que costumamos ver, dois outros filmes na selecção Tiger mostraram-nos o Médio Oriente que não vemos de todo. Do Líbano veio Agate Mousse, objecto inclassificável de onirismo alegórico, “filme de artista” onde Sélim Mourad encena a lenta erosão da fé na arte à medida que todos os seus companheiros de percurso artístico partem do Líbano ou vêem a sua arte já não os poder sustentar. Da Tunísia chegou Black Medusa, variação estilizada sobre a femme fatale que procura vingar uma ferida do passado; a dupla formada por Ismaël e Youssef Chebbi abre pistas extremamente interessantes que depois não explora a fundo, deixando o seu filme num limbo intrigante mas frustrante, entre o filme de género (film noir, giallo) e os “estados de fuga” psicológicos. Se nenhum dos dois – ambos primeiras longas-metragens de cineastas já com experiência nas curtas e no filme de artista – é inteiramente conseguido, a sua inclusão na competição de Roterdão confirma o bem-vindo foco do certame holandês em cinematografias laterais, como o provaram outras escolhas competitivas vindas do Kosovo (Looking for Venera de Norika Sefa), da Costa Rica (Aurora de Paz Fábrega) ou da República Dominicana.
Deste último país veio Liborio de Nino Martínez Sosa, sensual e impressionista estafeta entre olhares à volta de uma personagem que teve existência verídica na República Dominicana do início do século XX, um homem que se dizia ter ressuscitado depois de morto e que se tornou numa espécie de santo pagão. Entre a etnografia discreta e a narrativa de resistência, Martínez Sosa constrói um filme-transe envolvente que, no entanto, se recusa a explicar a sua personagem principal. Dividido em sete momentos, cada um vendo Liborio pelos olhos de uma das personagens, Liborio prefere convidar o espectador a tirar as suas próprias conclusões de modo limpo e leal, imergindo-os nas circunstâncias e perguntando-lhes o que estão a ver.
No seu melhor, é esse o papel de um festival de cinema, levando cada espectador a desenhar os seus percursos pessoais e por vezes circunstanciais entre filmes muito distintos e diferentes em si, desafiando-o a trocar as voltas às ideias predefinidas ou aos preconceitos. É verdade que as redes sociais e a visualização online, num computador ou no televisor, não substituem a experiência de estar presente na sala, do frisson de descoberta de um filme como parte de uma audiência. E alguns destes filmes perdem, forçosamente, por não terem um ecrã grande onde serem mostrados. Mas isso não anula o gesto de divulgação e de partilha: não faltaram bons filmes a concurso em Roterdão 2021, e num momento em que não se sabe quando os festivais poderão regressar ao seu formato de sempre, a sua exibição fez prova de resistência à inércia e à derrota. Ainda bem que assim foi.