A curadoria do desconforto
Escrevo este texto a pensar nos habitantes da Póvoa de São Miguel, no concelho de Moura, Alentejo. A aldeia tem uma população de 20% de pessoas de etnia cigana, que viram recentemente os seus conterrâneos não-ciganos a votar maioritariamente (41,23%) em André Ventura. Quem cuidará da ferida que se abriu — irracionalmente, por medo e com raiva — nessa comunidade?
Através do novo livro de Anne Applebaum, O Crepúsculo da Democracia: o fracasso da política e o apelo sedutor do autoritarismo, conheci a cientista política Karen Stenner, que estuda a activação política das personalidades de tipo autoritário. De acordo com a pesquisa de Stenner, em qualquer país do mundo um terço da população tem uma “predisposição autoritária” que favorece a homogeneidade e a ordem.
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Através do novo livro de Anne Applebaum, O Crepúsculo da Democracia: o fracasso da política e o apelo sedutor do autoritarismo, conheci a cientista política Karen Stenner, que estuda a activação política das personalidades de tipo autoritário. De acordo com a pesquisa de Stenner, em qualquer país do mundo um terço da população tem uma “predisposição autoritária” que favorece a homogeneidade e a ordem.
No seu livro, Applebaum reproduz uma conversa telefónica em que Stenner lhe disse que “a ‘predisposição autoritária’ que identificou não é exactamente a mesma coisa que uma mente fechada.” “Seria melhor descrita”, explica, “como uma mente simplória: as pessoas costumam ser atraídas por ideias autoritárias porque a complexidade as incomoda. Não gostam da divisão. Preferem a unidade. Uma ofensiva repentina de diversidade — diversidade de opiniões, diversidade de experiências — deixa-as irritadas. Procuram soluções numa nova linguagem política que as faça sentirem-se mais seguras e protegidas.”
Os populistas conhecem bem esta psicologia e é com base nela que constroem as suas tácticas: alimentam o desconforto e o medo e com poucas mensagens, curtas e simples, “vendem” segurança e protecção. No seu livro Como Funciona o Fascismo: A Política do Nós e Eles, Jason Stanley diz-nos que Hitler via na propaganda o meio de substituir, na esfera pública, argumentos racionais por medos e paixões irracionais. Refere-se ainda a uma entrevista de Steve Bannon, responsável pela campanha presidencial de Donald Trump em 2016, em que aquele afirmava que o Presidente tinha sido eleito com três slogans: “Drenem o pântano”, “Prendam a Clinton”, “Construam o muro na fronteira”. “Isso era pura raiva”, disse Bannon. “Raiva e medo são o que faz as pessoas irem às urnas.”
A irracionalidade e o medo estão muito presentes na vida política de vários países — incluindo o nosso — e têm sido decisivos para vários resultados eleitorais. A irritação (ou mesmo raiva) provocada pela diversidade de opiniões, de narrativas, de visões do mundo e de formas de ser está intimamente ligada ao desconforto sentido por muitas pessoas, para quem, como diz Stenner, a democracia liberal excedeu a sua capacidade de tolerância. No passado (depois das eleições americanas de 2016 ou do referendo do “Brexit”) cometemos o erro de considerar que essas pessoas são “simplesmente” estúpidas ou racistas ou fascistas. Recentemente, repetimos o erro depois das últimas eleições presidenciais americanas e portuguesas. Mas é mais complexo do que isso. Essas pessoas podem ser tudo isso ou nada disso; podem ser mais ou menos instruídas, mais ou menos cultas, mais ou menos ricas ou pobres.
No Verão passado, com o movimento Black Lives Matter a provocar um terramoto nos Estados Unidos da América e a despertar consciências um pouco por todo o mundo, o New York Times entrevistava Lonnie Bunch, o primeiro director do National Museum of African American History and Culture e, actualmente, primeiro secretário negro da Smithsonian. Bunch disse naquela entrevista que o papel das instituições culturais é fazer com que as pessoas se sintam à vontade com as nuances e a complexidade. Mais tarde, tive a oportunidade de o ouvir num debate organizado pelo Tropenmuseum de Amesterdão, em que disse que estamos todos ansiosamente à procura de respostas, desejando que o mundo seja preto ou branco. “Como podemos ajudar o nosso público a abraçar a ambiguidade? Ajudá-lo a sentir-se confortável com o debate e não apenas procurar respostas simples? Ajudá-lo a lidar com a complexidade e os tons de cinzento?”
Nas minhas leituras nos últimos tempos para a preparação de uma formação sobre os conceitos de “diversidade” e “inclusão”, e a sua aplicação no sector cultural, fui descobrindo a abertura de novos focos no trabalho de algumas organizações culturais estrangeiras. Estes traduzem-se em designações inspiradoras dos respectivos cargos, como: “direcção de diversidade”, “inclusão e mudança”, “estratégia e envolvimento aborígene” ou “direcção de pertença e inclusão”. Este é o reflexo da inquietação dessas organizações, uma inquietação que as torna mais conscientes do contexto no qual se inserem e das suas responsabilidades sociais e políticas. Cabe-nos ser “os curadores do desconforto”, comentou alguém num recente debate sobre descolonização, organizado pelo British Council, o ICOM UK e a Museums Association.
A pergunta que surge de imediato é se as nossas organizações culturais — nós, profissionais que nelas ou para elas trabalhamos — estarão preparadas para isso. Porque antes de ajudarmos o público a lidar com a ambiguidade e as nuances, devemos olhar para dentro e encarar o nosso próprio desconforto. A “ofensiva de diversidade” deixa-nos desconcertados, irritados, põe em causa os nossos conhecimentos e autoridade, é uma ameaça ao nosso estatuto. Na maioria dos casos procuramos também o conforto do nosso casulo, o mundo tal como sempre o conhecemos, dialogamos apenas com os pares que partilham das nossas opiniões e não revelamos qualquer inquietação em relação ao que está a acontecer à nossa volta. Há ainda profissionais da nossa área que se contentam com o conforto de uma suposta neutralidade. As palavras “diversidade” e “inclusão” surgem, mesmo assim, com alguma frequência no nosso discurso, mas não têm um efectivo impacto no nosso trabalho, nas perguntas que colocamos a nós próprios, na forma como avaliamos o que fazemos. São palavras bonitas, mas inspiram ainda pouca acção. No entanto, é preciso a mudança começar de dentro.
Depois, temos de olhar para fora: ganhar maior consciência do mundo que nos rodeia, do contexto no qual operamos; ter a coragem de nos envolvermos e de agirmos; a humildade de ouvir. Escrevo este texto a pensar nos habitantes da Póvoa de São Miguel, no concelho de Moura, Alentejo. A aldeia tem uma população de 20% de pessoas de etnia cigana, que viram recentemente os seus conterrâneos não-ciganos a votar maioritariamente (41,23%) em André Ventura. Pela reportagem que li, pode-se concluir que não existem problemas na comunidade. Mesmo assim, a população não-cigana sente-se incomodada, ameaçada, porque, por exemplo, os ciganos compram casas no centro da aldeia, têm muitos filhos e, claro, “vivem às nossas custas” (o slogan de André Ventura bem digerido).
Quem cuidará da ferida que se abriu — irracionalmente, por medo e com raiva — nessa comunidade? E de outras feridas, desencontros e incompreensões noutras comunidades? De que forma iremos combater as percepções que se sobrepõem aos factos, ajudar as pessoas a sentir-se à vontade com a complexidade, a encontrar felicidade no conhecimento, a encarar a diversidade como uma oportunidade e um desafio criativo, e não como uma ameaça?
As organizações culturais do país, fazendo parte de uma rede cultural e educativa mais ampla (que envolve também as escolas, os tribunais, os hospitais, as repartições públicas, as forças de segurança), têm uma responsabilidade em tudo isto. Entendem-na como tal? Ajudarão a cuidar do desconforto?